Cientistas do Centro de Estudos do Mar da UFPR registraram aumento de substâncias químicas relacionadas a uma maior atividade humana no continente, seja para turismo ou pesquisa, e ao aquecimento da superfície marinha.
Mesmo sendo um dos menores continentes da Terra — seus 14 milhões de km² representam menos de 3% da superfície terrestre —, a Antártica é um dos poucos ambientes ainda preservados do mundo e, por isso, serve como sentinela para as demais regiões do planeta. Daí o alerta embutido em estudos recentes, publicados por um grupo de pesquisadores do Centro de Estudos do Mar (CEM) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que revelam o impacto da atividade humana na região da Baía do Almirantado, uma das mais movimentadas do continente antártico.
A consequência do aumento dessa interferência tem sido a ocorrência de elementos e substâncias associadas ao uso do petróleo e do descarte de esgoto.
A partir de amostras de sedimento marinho, coletadas pelos pesquisadores entre os anos 2000 e 2020, que refletem a variabilidade ambiental ao longo dos últimos 60 anos, os pesquisadores utilizaram três diferentes classes de biomarcadores químicos para evidenciar as possíveis mudanças ambientais que ocorreram naquele ambiente durante aquela escala de tempo. Os materiais foram estudados pela equipe do Laboratório de Geoquímica Orgânica e Poluição Marinha (LaGPoM), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sistemas Costeiros Oceânicos da UFPR.
Os resultados foram publicados nas revistas científicas Marine Chemistry, Science of The Total Environment e Organic Geochemistry.
Um dos elementos analisados foi o fósforo. O fósforo tem origem natural no ambiente antártico, estando relacionado às alterações físicas das rochas e aos solos — abundantes em material orgânico produzido por aves —, mas também está presente no esgoto. Quando há atividade humana, há descarte de esgoto no ambiente e, consequentemente, os níveis de fósforo devem ser maiores do que os encontrados em períodos mais antigos, anteriores à presença frequente do homem na Antártica.
Conforme explica César de Castro Martins, coordenador da pesquisa, os cientistas levantaram os valores de base para o elemento fósforo em períodos pretéritos à presença humana na Baía do Almirantado e compararam esses níveis com dados atuais. Na península Keller, na baía, está localizada a Estação Antártica Comandante Ferraz, da Marinha Brasileira.
“Nossas amostras refletem períodos mais recentes e apontam valores mais altos de fósforo. Portanto, esse elemento pode ser usado para avaliar a transformação do ambiente marinho antártico nas condições de elevação de temperatura e de aumento de atividades humanas provenientes de pesquisa e de turismo”.
Os hidrocarbonetos alifáticos foram outra classe de biomarcadores investigada pela equipe. Essas substâncias podem ser encontradas em organismos marinhos e terrestres e também no petróleo.
“É um marcador orgânico capaz de refletir a utilização de combustíveis fósseis proveniente da atividade humana na Antártica”, afirma Martins. Novamente, as amostras de sedimento que refletem os últimos 60 anos foram utilizadas para análise.
A observação resultou em uma mistura de fontes que seriam a origem dos hidrocarbonetos alifáticos. Os pesquisadores entenderam que encontraram biomarcadores que retratam a variabilidade da produtividade marinha e o aporte continental, que pode ser resultado da mudança climática na região.
Aquecimento global parece contribuir para que resíduos do continente cheguem ao mar
Nessa avaliação, os pesquisadores notaram que, no período de 1975 a 1992, houve um aumento maior na concentração de alguns hidrocarbonetos, o que pode significar que a elevação da temperatura do planeta leva mais material continental para a região marinha da Antártica.
“Alguns organismos marinhos mais adaptados a essa condição de temperatura elevada tiveram maior abundância. Quando uma condição ambiental se altera, algumas espécies se adaptam e outras declinam, podendo chegar à extinção”, diz Martins.
Por último, em parceria com pesquisadores da Universidade de Bristol, do Reino Unido, os cientistas calibraram uma ferramenta geoquímica que permite o estudo da temperatura da superfície do mar em períodos anteriores aos contemplados por registros instrumentais.
Segundo o professor, dados de estações meteorológicas na Antártica começaram a surgir a partir da década de 1940. Antes disso, não há como saber qual seria a temperatura da superfície do mar.
“Algumas substâncias químicas produzidas por organismos são sensíveis à variação de temperatura e podem ajudar nessa investigação. Em certos organismos, condições de temperatura diferentes levam a composições de membranas celulares diferentes. Assim, é possível traçar um paralelo com a variação de temperatura”.
Essas substâncias, denominadas isoprenoidal glycerol dialkyl glycerol tetraethers (isoGDGTs), são bastante resistentes à degradação, ficando preservadas em sedimentos marinhos de fundo, o que permite que material orgânico depositado há muitos anos possa ser analisado, possibilitando a associação direta na determinação da temperatura da superfície do mar.
Com base nesse estudo, os cientistas concluíram que a temperatura da superfície do mar aumentou ao longo dos últimos 60 anos.
“Isso é uma evidência de aquecimento na temperatura da atmosfera, que pode levar ao degelo, carreando material continental e ocasionando transformações no ambiente”, destaca Martins.
Para a equipe, esses estudos — ainda bastante restritos — podem contribuir para que outros pesquisadores analisem os mesmos compostos e reconstruam cenários de períodos anteriores ou mais longos. “Os resultados demonstraram que, por mais que os instrumentos meteorológicos indiquem que a temperatura está aumentando, também há uma substância química, produzida naquele ambiente, que confirma essa situação”, salienta o especialista.
Dados reforçam alerta sobre alterações ambientais causadas por maiores temperaturas
Os pesquisadores afirmam que as informações coletadas nessas pesquisas revelam o aumento da temperatura no planeta de forma geral, refletindo as atividades humanas em escala global, mas também alterações locais no continente antártico, relacionadas ao turismo e à atividade científica.
Alterações ambientais podem desestabilizar o ambiente marinho da região, levando à extinção de espécies, de organismos e até ao desaparecimento de componentes biológicos de uma teia trófica, ou seja, de toda a interligação natural de cadeias alimentares de uma comunidade ecológica.
“Alguns organismos estão mais adaptados às mudanças, tendendo a prosperar ou aumentar sua participação no ambiente, vencendo a participação de outros organismos presentes no local. Algumas espécies têm hábitos alimentares bastante específicos e, uma vez que essa fonte de alimento seja eliminada, pode haver a extinção de toda uma teia trófica”, alerta Martins.
Os cientistas lembram que a Antártica é um dos poucos ambientes ainda preservados, sem atividades humanas muito significativas, já que não há produção industrial, agrícola ou agropecuária. Por esse motivo, eles consideram a região como sentinela, portanto as mudanças que ocorrem lá, por menores que sejam, são suficientes para alertar quanto à condição ambiental do planeta de modo geral.
“As informações que fornecemos podem ser utilizadas em escala global por gestores e por grupos de discussão para confirmar essas alterações ambientais que vêm ocorrendo ao longo dos últimos anos”.
Novas pesquisas buscarão calcular impacto de contaminantes, incluindo os de xampus e filtros solares
O projeto “As múltiplas faces do carbono orgânico e metais no ecossistema subantártico: variabilidade espaço-temporal, conexões com fatores ambientais e a transferência entre compartimentos (Carbmet)”, aprovado em 2018 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no âmbito da Chamada do Programa Antártico Brasileiro (ProAntar), teve as atividades de pesquisa em campo suspensas no verão de 2021 devido à pandemia de Covid-19.
Recentemente, as expedições foram retomadas com grupos restritos de pesquisadores e com limitações logísticas que não permitiram que a equipe da UFPR pudesse participar. Entretanto, o projeto deve ser prorrogado e os cientistas esperam voltar à Antártica no final de 2022 e início de 2023 e, em seguida, no final de 2023 e início de 2024.
“Nessas duas oportunidades, nossa ideia é coletar amostras de água e de sedimentos marinhos para avaliar a variabilidade ambiental em uma curta escala de tempo para acompanhar se essas mudanças poderiam refletir um cenário de maiores temperaturas e impactos na região a longo prazo”, revela Martins.
Paralelamente a isso, o grupo da UFPR tem um estudo de monitoramento ambiental que está relacionado à entrada de contaminantes regulados e emergentes no continente antártico. Os contaminantes regulados são aqueles para os quais já existem níveis pré-estabelecidos que causariam impacto ao ambiente. Os emergentes estão presentes em fragrâncias, protetores solares, xampus, fármacos e outros itens de uso pessoal.
“Os estudos sobre isso ainda são escassos, então não sabemos qual é a resposta do ambiente antártico para a exposição a esses contaminantes. Por isso também temos pesquisadores realizando essa avaliação e esperamos, em breve, ter novos dados com relação a esses componentes na Baía do Almirantado”.