A trajetória de uma pessoa trans durante toda a vida é marcada por lutas e por uma busca incansável para alcançar igualdade de direitos e inclusão dentro dos diversos âmbitos da sociedade. E no que diz respeito à garantia, manutenção e proteção à saúde dessas pessoas, a realidade não é diferente. Como evidencia a pesquisa de Bianca Lopes Rosa, “Cuidados em saúde no processo transexualizador”, realizada no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás (PPGSC/IPTSP/UFG), a população trans enfrenta barreiras no serviço público de saúde, fomentadas pela preconceito e discriminação, até conseguir, de fato, acesso ao serviço especializado no processo de afirmação de gênero no Sistema Único de Saúde (SUS).
A pesquisa entrevistou 74 pessoas trans (homens e mulheres trans, travestis e não-binárias) para entender a percepção dos sujeitos em relação à assistência à saúde. Foram avaliados pelo estudo transversal, de abordagem quantitativa descritiva, quatro eixos de análise: aspectos sociodemográficos, acesso e acolhimento, cuidados clínicos e percepção relacionada à assistência recebida. Como resultado, o estudo identificou dificuldades enfrentadas no acesso à saúde pelas pessoas trans nos diferentes níveis de atenção. E para o acesso ao programa do SUS Processo Transexualizador (TX), a realidade não é diferente. Preconceito, falta de informação, despreparo dos profissionais de saúde no relacionamento com pessoas trans, falhas no processo de referenciamento e regulação para os serviços especializados (TX), e desarticulação com a Rede de Atenção Básica à saúde e Rede de Atenção Psicossocial estão entre as dificuldades enfrentadas pela população trans.
Para Bianca Lopes, apesar dos avanços e da criação de políticas públicas afirmativas existentes como as que são desenvolvidas pelo SUS, as dificuldades, falhas e barreiras ainda se mostram resistentes. Segundo ela, “os profissionais de saúde estão despreparados para receber a população trans nas suas dinâmicas de trabalho”. Ela também observa que o processo de educação permanente desses profissionais é deficitário. “Há identificação de problemas no relacionamento com profissionais da atenção primária, urgência e emergência, até chegar no serviço especializado. Já os profissionais da equipe especializada multiprofissional que fazem a assistência das pessoas trans no respectivo serviço é bem avaliada, segundo os resultados da pesquisa, ou seja, o maior problema é conseguir chegar no serviço (TX) ”, afirma a pesquisadora.
Outro aspecto observado pela pesquisa foi a maior dificuldade de acesso ao serviço especializado, assim como a negligência e a exclusão enfrentada pelas pessoas negras e socioeconomicamente mais vulneráveis. A autora, que faz parte da comunidade trans, é usuária da política do processo transexualizador pelo SUS, ativista dos direitos das pessoas trans/travestis e trabalha com atenção à saúde da população LGBTQIAPN+ na Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, ressalta que estas questões relacionadas às falhas no atendimento e na recepção dos pacientes trans pelos profissionais são resultado das violências e da transfobia ainda presentes na sociedade. Segundo ela, a transfobia possui nuances que se relacionam com gênero, raça e classe e, por conta disso, pessoas trans com características socioeconômicas e raciais vulneráveis acabam percorrendo caminhos diferentes para alcançarem os mesmos objetivos, isso quando há a possibilidade de ter acesso aos serviços que são oferecidos.
No entanto, após conseguirem o acesso, e devido ao acompanhamento no serviço especializado no processo de afirmação de gênero, observa-se o impacto positivo na qualidade de vida dos pacientes. “Subjetivamente, os aspectos multidimensionais da vida, ou seja, na vida afetiva, emocional, profissional, familiar e social, os resultados foram percebidos como positivos. Após terem acesso ao acompanhamento especializado, há melhoras e impactos positivos para mais de 70% dos entrevistados”, afirma a pesquisadora.
Saúde pública e gratuita
O Processo Transexualizador (TX) é um programa do SUS voltado à população trans para o acompanhamento psicossocial de acolhimento e escuta e para a realização de procedimentos de modificação corporal e genital com acompanhamento multiprofissional para as pessoas que desejam a hormonização e/ou algum tipo de cirurgia, não sendo estas demandas ou necessidades de todas as pessoas trans. O atendimento conta com serviços ambulatoriais, com acompanhamento clínico, psicológico e hormonização, e serviços hospitalares, que incluem a realização de cirurgias e acompanhamento pré e pós-operatório.
Atualmente em Goiás o processo TX nas duas modalidades (ambulatorial e cirúrgica) é realizado apenas pelo Hospital Estadual Dr. Alberto Rassi (HGG), que foi o local escolhido por Bianca para a realização da pesquisa realizada com os pacientes usuários do Ambulatório Trans do HGG, que é uma das unidades de referência do programa público do SUS no Brasil.
Como ressaltado pela autora da pesquisa, apesar de existirem locais como esse, a caminhada até conseguir acesso aos serviços especializados “é muito cansativa e desgastante, principalmente quando se vive em situação de vulnerabilidade e não possui apoio da família, nem da sociedade”. Com isso esta fase se torna mais uma barreira a ser superada por pessoas trans que desejam receber os cuidados em saúde e passar pelo processo transexualizador.
Além de evidenciar as dificuldades enfrentadas no caminho até o atendimento especializado, a pesquisa também ressalta a falta de programas e ações direcionadas à atenção à saúde das crianças e adolescentes. Foi constatado que essa etapa tem sido negligenciada e por conta disso reverbera em danos à saúde mental dessas pessoas que estão em desenvolvimento e têm necessidades de acompanhamento especializado junto ao processo de afirmação de gênero pelo SUS. “No geral, os dados mostraram que as pessoas trans se percebem não-cis antes dos 10 anos de idade e geralmente só conseguem se reafirmar e iniciar o processo depois dos 20 anos, que é quando essas pessoas adquirem mais autonomia. Isso quer dizer que as crianças e os adolescentes trans estão ficando sem atenção qualificada”, afirma Bianca.
A pesquisadora acredita que o estudo é necessário para denunciar o apagamento histórico, social, etnico e econômico da população trans no país, que nega outros direitos fundamentais à população trans e que acaba desaguando na área da Saúde e em diversas outras áreas. Por conta disso ela busca, com a pesquisa, visibilizar a pauta política da população trans não só no âmbito da Saúde, mas deseja trazer isso também para o ambiente acadêmico, que de certa forma influencia na saúde dessas pessoas.
Segundo ela, “é necessário que se oportunize que as pessoas trans/travestis participem e contribuam nos diferentes espaços da comunidade universitária, e que esta esteja consciente e imbuída das necessidades de inclusão e naturalização da presença das pessoas trans/travestis dentro da academia não apenas como população pesquisada, mas como potenciais pesquisadores e pesquisadoras”.
Com a defesa de sua dissertação de mestrado, Bianca Lopes Rosa, tornou-se a primeira pessoa trans a obter o título de mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da UFG. Bianca afirma estar feliz, mas questiona o fato de ser a única a obter a conquista. “Incomoda-me o fato de pensar que sou a primeira pessoa trans a ingressar e finalizar o curso em 13 anos de existência do programa, e a pergunta que não quer calar é: Será que eu fui a única pessoa trans a me interessar pelo programa/título ou outras pessoas trans até quiseram, mas não tiveram condições e/ou oportunidades de concorrer a uma vaga no processo seletivo?”.
Fonte: Secom UFG