UFSC – Pesquisa propõe método humanizado para o exame preventivo

“Minha motivação para humanizar a coleta do exame citopatológico não foi meramente um sentimento de ‘amor’, ‘empatia’, mas sim o inconformismo.” É dessa forma que a enfermeira Leticia Fumagalli da Silva descreve o que foi o ponto de partida para sua pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Gestão do Cuidado em Enfermagem na Universidade Federal de Santa Catarina (PPGPENF/UFSC). Letícia concluiu o trabalho no segundo semestre de 2022 e sua dissertação está disponível on-line no site da Biblioteca Universitária. Sua pesquisa, orientada pela professora Marli Terezinha Stein Backes, líder do Laboratório de Pesquisa, Tecnologia e Inovação em Enfermagem na Saúde da Mulher e do Recém-nascido (GRUPESMUR/UFSC), conseguiu demonstrar que uma abordagem humanizada dos profissionais da saúde traz resultados muito positivos para a saúde da mulher.

Enfermeira do município de Videira (SC) desde 2013, Letícia passou a ser responsável pela coleta do exame citopatológico do colo uterino – conhecido popularmente como “preventivo” ou “Papanicolau” – em meados de 2018, quando integrou a equipe multiprofissional de Estratégia Saúde da Família (ESF). O exame é um importante recurso para diagnosticar e prevenir o câncer de colo de útero (CCU), doença comum em mulheres acima de 25 anos que já tiveram atividade sexual. Para esse público, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) recomenda que sejam realizados dois primeiros exames com o intervalo de um ano entre eles e, caso os resultados de ambos sejam normais, os exames seguintes devem ser realizados a cada três anos.

Essa recomendação, entretanto, não era seguida pela maioria das mulheres que Letícia atendia. “Quando perguntava qual havia sido o ano da última coleta, elas me respondiam: 2011, 2013, 2014… Observei que havia um intervalo muito grande entre uma coleta e outra. E isso começou a chamar minha atenção. Então, além de perguntar ‘qual foi o ano da última coleta?’, passei a perguntar também ‘por que a senhora demorou tanto tempo pra voltar?’ E uma pergunta tão simples abriu um caminho com respostas que eu nem poderia imaginar.”

Letícia relata, em seu trabalho, que as mulheres deixavam de procurar as unidades de saúde para realizar o exame porque, segundo elas, na última vez não haviam recebido um tratamento respeitoso. “Elas se referiam a atendimentos de todo tipo, realizados por médicos e enfermeiras, no SUS e em clínicas particulares. E não era uma realidade apenas de quem morava naquela região, uma vez que muitas delas vinham de fora.” A pesquisadora notou que as mulheres já chegavam para a coleta tensas e com receio da dor e do desconforto que o exame lhes causaria. Elas relatavam que, em suas experiências anteriores, praticamente não houve comunicação entre o profissional de saúde e a paciente. E quando havia, esta geralmente era “grosseira”, “estúpida”, “fria”.

Uma queixa comum era a de que o espéculo – instrumento utilizado para exames ginecológicos – era inserido no canal vaginal com força e sem qualquer aviso. “Ficavam mexendo o espéculo dentro delas, sem explicar o que estava acontecendo. Aquilo causava-lhes ainda mais tensão e a dor só aumentava”, descreve Letícia. “Outra coisa que elas comentavam era que, às vezes, quando apresentavam vaginose ou algo que causasse odor, era comum o coletador fazer cara de nojo, o que para elas era o fim do mundo. Então muitas mulheres tinham medo, inclusive, da expressão facial que o profissional poderia fazer durante a coleta.”

Enfermeira Letícia Fumagalli com instrumentos utilizados para a coleta do exame preventivo. Foto: Guilherme Valério.

Os preparativos para o exame também eram pouco cuidadosos. “Pediam que tirassem a roupa, mas não lhes davam nada para vestir. Elas ficavam com os seios à mostra e se incomodavam com isso. As mulheres com seios volumosos, sobretudo, diziam se sentir expostas e não respeitadas. Elas realmente não se sentiam acolhidas”, explica Letícia. Depois de uma experiência desagradável, era frequente que essas mulheres não voltassem sequer para pegar o resultado do exame. Adicionado a tudo isso, elas também se queixavam da falta de informação: “Ninguém lhes dizia se deveriam retornar para repetir o preventivo nem quando deveriam fazer isso.” Sem saber a razão e a importância do exame, elas não se sentiam motivadas a retornar. Em geral, essas pacientes só procuravam novamente o atendimento ginecológico quando enfrentavam algum incômodo, como um corrimento, dor, coceira, ou a suspeita de alguma doença.

À medida que ouvia todos esses relatos, Letícia pensava: “Eu preciso mudar isso, não quero que essas mulheres saiam daqui, dessa unidade de saúde, com uma coleta feita por mim, com esse mesmo sentimento. Não quero que digam mais uma vez que não voltaram porque não se sentiram acolhidas ou porque se sentiram expostas. Eu não queria ser mais uma profissional de saúde a lhes causar essa impressão.” Nesse sentido, o mestrado profissional em Enfermagem da UFSC se mostrou como espaço ideal para que pudesse desenvolver e aprimorar uma abordagem humanizada, baseada em dados coletados e organizados com rigor científico. Um dos objetivos do programa é justamente propor métodos inovadores e transformar a prática da Enfermagem no âmbito do cuidado da saúde pública.

A pesquisadora passou então a analisar os números, para entender se essa diminuição nos retornos seria realmente significativa. “Vi que, em 2014, por exemplo, tivemos 2.984 coletas no município. Já em 2019, foram 1.258. Ou seja, em vez de aumentarmos as coletas, já que nosso objetivo é sempre chegar a mais mulheres, elas estavam diminuindo. Tinham diminuído 57% desde 2014. Isso me assustou, mas ao mesmo tempo me deu a certeza de que o que eu observava empiricamente se refletia nos números.” Letícia acessou esses números no DATASUS, uma base de dados pública com indicadores da situação sanitária do país.

Em 2020, Letícia começou a implementar medidas de humanização em seus atendimentos. E os resultados foram surpreendentes: “Mesmo sendo um ano de pandemia, o que nos levou a ficar sem coletar por alguns meses, as coletas aumentaram em 76% em relação ao ano anterior.” O que foi que ela fez de diferente? Primeiramente, organizou a sala em que atendia, tornando-a mais acolhedora. Convidou a arquiteta Carolina Posanske para planejar uma reforma no consultório “com o objetivo de criar uma ambiência acolhedora, humanizada, com acesso às mulheres portadoras de deficiência física ou qualquer limitação existente”. Letícia apresentou o projeto para a prefeitura de Videira (SC), que acatou a ideia e iniciou os trâmites para a reforma.

Além da parte estrutural, Letícia fez outras mudanças relacionadas ao espaço físico: “Busquei deixar o ambiente mais acolhedor e aconchegante para as pacientes realizarem a coleta do exame, utilizei aromas olfativos, cromoterapia na ambiência e musicoterapia com ênfase na música clássica. Ofereci um espaço com um biombo, onde podiam colocar suas roupas. Ali também havia um tapete e um par de chinelos para não ficarem descalças no piso frio. Por meio de toda essa simplicidade e muita humanização, iniciei um pequeno movimento que motivava as mulheres a incentivar outras a buscar a unidade.”

Musicoterapia, aromaterapia e cromoterapia

O emprego de diferentes recursos terapêuticos, pouco usuais em um consultório médico, tinha por objetivo “proporcionar um ambiente mais relaxante e acolhedor” às pacientes. “Uma caixinha de som pequena e discreta foi colocada na sala, tocando uma música ambiente calma e com volume baixo, para trazer conforto e tranquilidade para a mulher”. O volume baixo, segundo Letícia, era importante “para não atrapalhar a conversa entre o profissional e a mulher, visto que a comunicação e explicação dos procedimentos é imprescindível nesse momento”.

Para a aromaterapia, a enfermeira utilizou dois aromatizadores elétricos de cerâmica. Ambos ficavam ligados em tempo integral no consultório. “Uma unidade foi utilizada na entrada do consultório e a outra no ambiente interno do consultório, onde é feita a coleta de exames.” A cromoterapia foi utilizada para definir as tonalidades predominantes nas paredes do consultório. Letícia optou pelo rosa pois, segundo ela, essa cor “remete ao cuidado com a saúde da mulher, transmitindo doçura e feminilidade”, além de ser a tonalidade da campanha “Outubro Rosa”, que visa conscientizar as mulheres sobre a importância da prevenção e diagnóstico do câncer de mama. Esses recursos terapêuticos, afirma a pesquisadora, transmitem “tranquilidade para a mulher, que geralmente encontra-se tensa para a realização do exame”. Todos eles foram elaborados com a participação constante das usuárias da unidade de saúde.

Outros recursos

À medida em que presenciava os resultados do seu trabalho, Letícia se sentia motivada a seguir buscando novas ferramentas para proporcionar uma boa experiência às mulheres que atendia. Outra novidade que implementou foi a oferta de um chinelo de tecido e um robe a ser usado durante a coleta: “Ele foi inspirado em um robe que eu tinha em casa e poderia facilmente se adequar aos vários tipos físicos. Este robe permitia ser amarrado na cintura, assegurando que os corpos das usuárias ficariam protegidos e suas mamas não ficariam expostas desnecessariamente. Levei o robe em uma loja de tecidos, escolhi um tecido que não fosse muito transparente e, ao mesmo tempo, que fosse de fácil manuseio e lavagem.”

Após confecção dos robes, Letícia providenciou a confecção de um sobre lençol, para que as pacientes pudessem ter privacidade durante o procedimento e não fossem obrigadas a olhar o rosto do profissional, caso não desejassem. Posteriormente, ela fez ainda bordados nos robes e sobre lençóis com frases motivacionais: “Nos robes foram bordadas dois tipos de frases motivacionais: ‘Você é linda’ e ‘Você é maravilhosa’. Por meio disso, visava que as mulheres saíssem do meu consultório melhor do que haviam chegado, sentindo-se valorizadas. No sobre lençol a frase bordada em todos foi ‘PARABÉNS! Você se ama, você se cuida!’, sempre na tentativa de inspirar as mulheres a fazer seus exames periodicamente e mostrando para ela mesma o quanto se priorizar e se amar tem seu valor.”

Letícia relata, em sua dissertação, que os resultados dessas pequenas mudanças eram visíveis e imediatos: “Antes da realização do exame clínico das mamas, na fase de palpação, quando eu colocava o sobre lençol logo após a paciente se deitar na maca, eu observava no semblante de cada uma a sensação de acalento e aconchego ao ser coberta. Algumas até seguravam o lençol, como se fosse uma coberta quentinha. Após concluir o exame das mamas, no momento de iniciar a posição ginecológica, elas liam a frase bordada e abriam mais um sorriso. Eu sempre intensificava a importância da verdade contida naquela frase e o quanto era importante ela retornar nos próximos anos.”

Durante a pesquisa, Letícia decidiu “batizar” todos esses recursos que vinha utilizando para humanizar o atendimento como “método Fumagalli”. Nomear sua prática humanizada foi a forma que encontrou para divulgá-la entre seus colegas de trabalho e incentivá-los a também adotá-la. Aos poucos, a enfermeira foi profissionalizando sua prática: “Busquei seguir padrões de higiene exigidos pela vigilância sanitária, substituindo o chinelo de tecido, pelo chinelo descartável de EVA, que veio como uma solução de baixo custo e útil para deixar as pacientes confortáveis.”

Ela também providenciou a confecção artesanal de macromodelos do aparelho reprodutor feminino, que seriam utilizados como recursos educativos para a orientação e esclarecimento de dúvidas das pacientes. Tais ferramentas, favoreciam “o entendimento, promovendo o estabelecimento de vínculos e confiança entre a profissional e a usuária”. Letícia explica, em

Letícia mostra diferentes tamanhos de espéculos.

sua dissertação, que “a adoção de modelos anatômicos femininos tem como finalidade a promoção da educação em saúde, pois é possível demonstrar para a mulher os detalhes do seu corpo, como se dá a coleta do exame citopatológico do colo uterino, bem como o exame clínico das mamas”.

Outra questão importante, apontada pela pesquisadora, é a escolha do “tamanho adequado do espéculo para cada usuária, assim evitando possíveis traumas que impeçam de retorno a exames futuros”. Quando o profissional está atento a isso, reduz-se “a dor e o desconforto da mulher durante a realização do exame citopatológico do colo uterino”.

Resultados

Três anos após iniciar uma abordagem mais humanizada em seus atendimentos, houve um aumento significativo no número de exames realizados no município de Videira (SC). Em 2019, foram realizadas 1.258 coletas; em 2020, 2.225; em 2021, 2.588; em 2022, 3.598. Isto é, em um período de três anos, houve um aumento de 186%. Desde que concluiu sua pesquisa, Letícia segue aplicando o método humanizado nas coletas de exame citopatológico que realiza diariamente na unidade de saúde em que atua. Ela reconhece que realizar o mestrado profissional na UFSC foi fundamental para aprimorar sua prática e validar, cientificamente, o que ela já observava empiricamente: “A professora Marli veio a ser a minha orientadora e grande incentivadora e, assim, travamos uma grande luta pela humanização e contra a violência ginecológica.”

Ao final de sua pesquisa, Letícia conclui que “o enfermeiro como protagonista do cuidado deve-se colocar em uma posição de igualdade e não de superioridade, estabelecendo a empatia e principalmente a ética durante a consulta de enfermagem. A consulta humanizada de enfermagem para a coleta do exame citopatológico de colo uterino traz inúmeros benefícios para a saúde da mulher”.

A dissertação de mestrado de Leticia Fumagalli da Silva está disponível aqui.

Para saber mais sobre o Mestrado Profissional Gestão do Cuidado em Enfermagem, acesse aqui.

Por Daniela Caniçali

Texto originalmente publicado em UFSC