UFCSPA esclarece dúvidas sobre as listas de transplante de órgãos

O transplante cardíaco a que foi submetido o apresentador Fausto Silva neste domingo, 27 de agosto, foi alvo de questionamentos nas seções de comentários de portais de notícias e redes sociais pela suposta rapidez – percebida como “incomum”- na realização do procedimento. MC Marcinho, ícone do funk, que faleceu no último sábado (26), também estava à espera de um órgão, mas teve que sair da lista de espera devido a complicações em seu quadro. Por envolver figuras públicas, algumas pessoas colocaram em suspeita os critérios adotados para a priorização do apresentador na lista de espera por um coração e o trabalho na gestão de transplantes, que, no Brasil, é feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Como polo de produção e difusão de conhecimentos em saúde, a UFCSPA aproveita a oportunidade para esclarecer algumas das principais dúvidas da sociedade sobre o tema. Confira agora uma entrevista realizada com a professora Elizete Keitel, médica nefrologista que atua com a residência médica e pesquisas relacionadas ao transplante de rins.


Há situações em que um receptor espera por um órgão por mais de um ano, enquanto outro recebe o transplante em poucas semanas. O que explica tanta diferença de tempo?

Em primeiro lugar, existe a especificidade do transplante ser de um órgão não vital, como rim, ou vital, como pulmões, fígado e coração. No caso do transplante renal, por exemplo, os pacientes sobrevivem através do tratamento dialítico (hemodiálise ou diálise peritoneal)  enquanto aguardam por um rim. Assim, a alocação de órgãos pode ser feita de maneira que se busque uma melhor compatibilidade imunológica entre doador e receptor.

Por exemplo, se temos um doador do grupo “O”, apenas receptores desse mesmo grupo sanguíneo “disputarão” por esse órgão. Depois do grupo sanguíneo, também são verificados outros critérios de compatibilidade imunológica. Tudo isso é monitorado por um sistema de computador que analisa as tipagens e a compatibilização entre doadores e receptores. No caso de órgãos não vitais como os rins, o tempo do paciente na lista de espera é apenas considerado em um segundo momento.

No caso de órgãos vitais, como o coração, são considerados outros critérios?

Nesses casos, o principal critério é a gravidade da situação do paciente, ou seja, a prioridade é para o receptor com maior risco de morte. Para cada órgão, existem diferentes critérios para avaliar o “somatório” dessa gravidade. A situação do apresentador Fausto Silva é um exemplo disso – devido à gravidade.  No Brasil, um terço dos transplantes cardíacos é realizado no primeiro mês após o paciente entrar na lista de espera.

Também são levadas em consideração outras questões, como o grupo sanguíneo do doador e a compatibilidade de tamanho entre o receptor e o doador do órgão. Por exemplo, o coração de um homem de 180cm e 90kg não pode ser doado para um uma criança ou um adulto de 150cm e 50kg. Enfim, também é avaliada a situação clínica do receptor, que não pode, por exemplo, estar sofrendo de uma doença infecciosa no momento do transplante. Foi o caso do MC Marcinho (Marcio André Nepomuceno Garcia, falecido em 26 de agosto no Rio de Janeiro à espera de um coração), outra situação que chamou a atenção da sociedade pelo tempo de espera, devido a ele ter adquirido uma infecção generalizada.

Quem controla todo esse processo de “distribuição”?

Não existe ingerência da equipe do hospital, como alguns imaginam. O gerenciamento é do Sistema Nacional de Transplantes, e em nível estadual isso é organizado pelas Centrais Estaduais de Transplantes ligadas às Secretarias de Saúde Estaduais.

Vamos tomar como exemplo a Santa Casa de Porto Alegre, referência em transplantes. Quando surge um doador, as equipes de transplantes do hospital recebem, da Central Estadual de Transplante do RS, uma lista de pacientes por órgão e por ordem de prioridade. A partir da lista, são feitos contatos com os receptores para verificar se estão em condições. No caso de órgãos vitais, pela urgência não há tempo hábil para fazer provas cruzadas, o resultado é retrospectivo. Todos os receptores recebem medicamentos imunossupressores para diminuir o risco de rejeição do órgão.

Qual é o papel do Sistema Único de Saúde neste cenário?

Em termos absolutos, o Brasil é o quarto país do mundo em número de transplantes realizados. Como mais de 95% dos transplantes são feitos pelo Sistema Único de Saúde, isso significa que é o maior sistema público do mundo em cirurgias de doação e recebimento de órgãos. Há regulamentações em diferentes instâncias sobre o assunto, que define as atribuições de diferentes pessoas no momento em que é realizada uma doação. É importante salientar que a decisão não é de uma equipe. Desde a identificação de um doador, todo o processo envolve mais de 100 pessoas de diferentes equipes. É todo um sistema regulamentado que gerencia e faz a compatibilização entre doadores e receptores.

Como estimular a doação de órgãos?

O mais importante é que as famílias conversem sobre o assunto. Depois da pandemia, foi verificado um aumento da recusa de familiares. Era de cerca de 30% e ocorreu um aumento das recusas, ou seja, falar sobre a morte ainda é um tabu e isso se reflete sobre a população. Então, para facilitar a decisão da família neste momento difícil, é preciso estimular esse tipo de conversa para conhecer as vontades de cada pessoa em relação ao assunto.

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Texto originalmente publicado em UFCSPA