Do contrabando para a aula: mercadorias apreendidas pela Receita viram pesquisa na universidade

Na Bahia, Ufba e UFRB têm parceria para doações; instituições já receberam aparelhos TVBox, instrumentos musicais e vinhos

Vinhos Crédito: Divulgação

Escondidos dentro de uma carga que chegou ao Porto de Salvador, um grupo de acordeões entrou no país ilegalmente. Contrabandeados dos Estados Unidos, 39 instrumentos aportaram aqui sem cumprir os requisitos para serem oficialmente importados. Isso aconteceu ao menos duas vezes nos últimos meses, sempre com apreensões da Receita Federal.

Escondidos dentro de uma carga que chegou ao Porto de Salvador, um grupo de acordeões entrou no país ilegalmente. Contrabandeados dos Estados Unidos, 39 instrumentos aportaram aqui sem cumprir os requisitos para serem oficialmente importados. Isso aconteceu ao menos duas vezes nos últimos meses, sempre com apreensões da Receita Federal.

Os acordeões, assim como toda mercadoria que chega ilegalmente, tinham possíveis destinos: leilão ou doação. Em algumas situações, o único caminho é a destruição, tal qual acontece com os cigarros. No caso dos instrumentos, foi a doação: 21 foram entregues no início do mês à Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde vão passar a fazer parte de aulas de graduação, pós-graduação e até cursos livres.

Essa entrega foi mais um passo na ampliação de uma parceria entre a Receita e a Ufba. Outros 18 foram encaminhados ao governo de Sergipe, para serem usados em aulas de música e orquestras sinfônicas.

“Imediatamente, a gente pensou na Escola de Música. Até tentamos enviar uma parte para a (orquestra) Neojibá, mas tinha alguns requisitos que eles não atendiam e a gente mandou os demais acordeões para Sergipe”, conta a delegada da Alfândega de Salvador, a auditora-fiscal Sandra Magnavita Castro. Para receber a doação, é preciso ser uma organização da sociedade civil, enquanto a Neojiba é uma organização social.

No mesmo dia, a Receita Federal entregou cerca de 600 garrafas de vinho para a Escola de Nutrição da Ufba, para que sejam usados nas práticas das aulas dos cursos de Nutrição e Gastronomia. As doações fazem parte do programa Cidadania Fiscal, criado pela Receita há dois anos e cujas entregas começaram a ir além de entidades da sociedade civil. Nas eleições de 2022, por exemplo, 200 smartphones foram doados para o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-BA).

Com a Ufba, porém, as apreensões marcam um novo capítulo do programa na Delegacia da Receita Federal em Salvador, ao estreitar o contato com mais instituições de ensino e pesquisa. Em 2022, quando o projeto teve início, o órgão também fez doações para a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Em todo o Brasil, o Fisco tem buscado universidades públicas para desenvolver parcerias semelhantes, com reflexos no ensino e no desenvolvimento de pesquisas. “A Receita Federal não é só para cobrar tributos ou fazer atuação de controle. A gente tem uma responsabilidade social muito forte. Dentro dessa linha, com o Cidadania Fiscal, a gente tem esse trabalho com as mercadorias apreendidas”, acrescenta.

21 acordeões foram entregues à Escola de Música da Ufba pela Receita Federal Crédito: Divulgação

Aulas

Tanto os vinhos doados à UFRB no final de 2022 quanto os mais recentes, entregues à Ufba, são derivados de diferentes apreensões. Não se tratam de bebidas falsificadas, mas que entraram no país de forma irregular, sem ter feito o pagamento dos tributos. Um dos rótulos apreendidos foi de garrafas Maison Pouget, que chega a ser vendido por R$ 1,9 mil no Brasil.

Na Ufba, as 602 garrafas que chegaram este mês serão direcionadas às aulas de nutrição e gastronomia. Este último, inclusive, é uma graduação noturna e quase todas as suas disciplinas são de natureza prática, de acordo com a diretora da Escola de Nutrição, Adenilda Queirós.

Uma das principais disciplinas que precisa de insumos como o vinho é a de Bebidas. “Essa disciplina tem o objetivo de caracterizar os aspectos históricos, econômicos e sociais das bebidas e coquetéis, além de conhecer a cadeia produtiva das bebidas alcóolicas e classificar segundo as técnicas de produção”, explica.

Nesse componente, os estudantes aprendem a preparar drinks com bebidas como vinho, gin e vodca. No caso dos vinhos, é preciso entender os tipos de uva, como são produzidas e de onde elas vêm. Também são ensinadas técnicas de harmonização com pratos e degustação.

“Foi uma surpresa muito boa, porque o curso de gastronomia demanda a compra de muitos alimentos. A universidade se esforça ao máximo para conseguir todos os insumos, mas o curso é quase 100% prático”, avalia.

Por semestre, as duas graduações – Nutrição e Gastronomia – precisam de pelo menos 100 litros de vinho. No entanto, esse total está longe de ser o ideal. O que acontece é que a escola solicita à Ufba, geralmente, o menor número possível devido à situação orçamentária.

Vinhos foram entregues à Ufba e também já foram enviados à UFRB Crédito: Divulgação

“É muito importante essa parceria porque a universidade tem um orçamento restrito e às vezes, ainda tem cortes no orçamento. A gente tem uma demanda grande de alunos no semestre e nem sempre conseguimos colocar todo mundo numa turma ou oferecer as disciplinas”, acrescenta a professora.

Geleia

Na UFRB, os 74 vinhos chegaram em dezembro de 2022. No ano passado, após quatro meses de estudo, um grupo de professores e estudantes do curso de Tecnologia em Alimentos na Educação do Campo, no campus de Feira de Santana, lançou a geleia de vinhos no ano passado. Ao contrário da Ufba, que recebeu garrafas de diferentes marcas, a UFRB ficou com um lote de um mesmo vinho chileno do tipo tinto.

Geleia de vinhos produzida pela UFRB
Geleia de vinhos produzida pela UFRB Crédito: Divulgação

O processo levou mais tempo porque envolve algumas fases, de acordo com a professora Samantha Serra Costa, doutora em Biotecnologia e coordenadora do projeto.

O primeiro ponto foi remover todo o álcool da bebida, garantindo que não ficasse nenhum resíduo. Isso é feito a partir do aquecimento, para que o álcool evapore. Depois, os pesquisadores adicionam açúcar ao vinho, como é feito com uma geleia normal, e cozinham por um tempo.

Na sequência, é o momento de adicionar pectina, que garante a consistência de gel. A geleia é regulada até chegar à temperatura entre 60 e 65 graus brix (1 grama de açúcar por 100 gramas de solução). Em seguida, a mistura recebe ácido cítrico, que serve para estabilizar e conservar. Depois, é só envasar.

“Nossa ideia é que a gente desenvolva uma forma de produção e transfira a tecnologia para que eles consigam produzir e comercializar”, explica a professora.

Cada garrafa gera até quatro potes de geleia de 200g. Agora, eles estão testando outros sabores (como vinho com abacaxi e vinho com pimenta), doce de vinho em barra, vinagre e calda. “Muitos dos nossos alunos são agricultores familiares e já trabalham em cooperativas, então é uma experiência muito produtiva para eles, com possibilidade de transformar o produto e gerar renda”, pontua.

Software

Além disso, a UFRB já recebeu cerca de 500 TVBox – aparelhos cuja venda no Brasil é proibida e que captam o sinal de canais de televisão a cabo. Esses itens têm sido transformados em computadores. De acordo com a professora Raissa Tavares, docente do curso de Engenharia de Tecnologia Assistiva e Acessibilidade da instituição e coordenadora do projeto, os itens são recebidos sob demanda.

“As TVBox vêm com um software para a captação do sinal de TV pirata, mas o sistema operacional que roda é o Android. A gente apaga o software e embarca o Linux, que é muito mais simples, livre e com poder de customização muito maior”, conta Raissa.

O mini computador fica com todos os recursos de um equipamento normal, a exemplo de edição de textos, apresentações e possibilidade de assistir a vídeos. Atualmente, eles já conseguem fazer isso em 30 minutos.

Pesquisadores da UFRB transformam TVBox em mini computadores Crédito: Divulgação

“É muito gratificante, para a gente, poder envolver pesquisadores, alunos e a sociedade em soluções que vão trazer benefícios. Esse equipamento poderia virar lixo eletrônico, mas estamos dando uma nova destinação que tem muito a ver com o nosso centro, que é focado em tecnologia e sustentabilidade”.

Muitos já estão sendo usados na própria universidade, a exemplo de estações na biblioteca. Outros 50 foram doados à Secretaria de Educação de Feira de Santana. “Nossa dificuldade é porque gostaríamos muito de fazer mais doações de computadores, mas precisamos dos periféricos, como monitores e teclados. Por isso, estamos trabalhando no desenvolvimento de outras aplicações para não depender dos periféricos”.

Segundo a delegada Sandra Magnavita Castro, a Receita está em busca de novos parceiros que possam receber desde mais aparelhos como os TVBox como outros itens, como cigarros. Ao invés de serem imediatamente destruídos, cigarros podem ser transformados em adubo. Esse projeto tem sido feito por instituições como o Instituto Federal do Sul de Minas, que transforma o tabaco em adubo para ser utilizado nos cursos de agronomia.

Computadores adaptados com a TVBox/ UFRB Crédito: Reprodução

“Semana que vem, vamos destruir cigarro, mas tem universidades que poderiam estar fazendo isso. Como não tenho essa parceria, vamos ter que destruir porque é uma carga que precisa ser logo destruída. O problema é que a destruição deve ser o último caminho, devemos destruir apenas que for relacionado à saúde, como medicamentos vencidos, por exemplo”.

Ocultos

Por sua vez, os acordeões chegaram a Salvador em contêineres, sem que os proprietários do que é chamado “bagagem desacompanhada” tivessem conhecimento. Por se tratar de uma fraude por meio de carga oculta, foram apreendidos pela aduaneira. Em geral, esses itens são encaminhados para ‘perdimento’ de imediato. Os acordeões possivelmente iriam a leilão.

No entanto, a lembrança da Escola de Música fez com que a delegada buscasse a instituição. “A gente fez o contato e o maestro (José) Maurício veio para ver como estavam os acordeões, se estavam em bom estado”, conta Sandra Magnavita Castro.

Em geral, a Receita Federal espera que órgãos, universidades e instituições em geral encaminhem pedidos de itens que precisam. Porém, por vezes, o próprio Fisco pode acioná-los. “Quando tem alguma coisa específica assim, como uma sanfona, a gente corre atrás porque é muito difícil alguém pedir uma sanfona. Mas o fluxo normal é que a gente recebe pedidos, como drones, celulares, esse tipo”, acrescenta.

Diretor da Escola de Música, o maestro e professor José Maurício Brandão disse que os instrumentos foram encaminhados para o tombamento, que é o processo de catalogação na universidade. Depois, devem entrar no processo de manutenção. “Como eles ficaram parados e armazenados todo esse tempo, não estão em condição de uso imediato. Não é somente porque eles foram apreendidos. Qualquer item musical, se fica parado, precisa de manutenção e passa pelos mesmos procedimentos”, afirma.

Uma vez que todos os passos forem concluídos, os acordeões serão usados nos projetos a serem desenvolvidos pela escola, inclusive a oferta de cursos livres. No entanto, o diretor informou que ainda não há previsão para esse processo ser finalizado.

Receita busca parceiros para ampliar programa

O programa da Receita Federal também destina mercadorias apreendidas para outros órgãos públicos. Itens chamados ‘contrafeitos’ – ou seja, falsificados – podem ser doados depois que passam por um processo de descaracterização, devido aos direitos autorais. Esse é o caso de roupas que têm nomes de marcas expostos, por exemplo.

O problema é que, atualmente, a Receita não têm efetivo que consiga fazer isso com todos os itens que chegam lá. “Nossos braços ainda são curtos para fazer tudo”, conta a delegada da Alfândega de Salvador, a auditora-fiscal Sandra Magnavita Castro.

Eles estão em busca de entidades para firmar parcerias que possam ajudar nesse processo e em outras formas de descaracterização. Em outros estados, há convênios com penitenciárias em que detentos e detentas que aprendem confecção ficam responsáveis por essa descaracterização.

“Não é fácil descaracterizar para poder doar. Não podemos doar mercadoria com direito autoral, por isso as parcerias são muito importantes. A gente precisa construir mais para ter um alcance cada vez maior”, analisa.

Um dos principais exemplos de itens aprendidos é um montante de cerca de 15 mil mochilas infantis que poderiam ser doadas a escolas municipais e estaduais, uma vez que as marcas não estejam identificadas.

No Natal, mais de cinco mil brinquedos foram doados, após passar por uma descaracterização em parceria com as Voluntárias Sociais.

“Por acaso eu estava no depósito e vi um bichinho de pelúcia com o selo do Inmetro. Vimos que aquele selo era verdadeiro e que a importação não era irregular. Teve algum problema no processo de importação, mas a carga foi abandonada. Os brinquedos iam ser destruídos, como o processo natural, mas a gente fez uma triagem e conseguiu separar para doação”.

Além disso, órgãos que precisarem de itens específicos podem solicitar doações à Receita Federal. Entre os itens doados, a delegada cita cadeiras de rodas a instituições que acolhem pessoas em situação de vulnerabilidade e até máscaras faciais. De uma única vez, um lote com 500 mil máscaras foi doado a uma instituição filantrópica. Em 2024, porém, por se tratar de um ano eleitoral, as doações não podem ser feitas para organizações sociais, apenas para órgãos governamentais.

Fonte: Correio