Reitores, reitoras e convidados debateram o protagonismo das universidades no compromisso com verdade, memória e justiça.
O papel das universidades brasileiras na defesa da democracia foi o tema de seminário realizado pela Andifes, nesta semana, na sede da entidade, em Brasília.
Durante a manhã e a tarde da última quarta-feira (24) reitores, reitoras e convidados discutiram o papel das universidades federais na defesa da democracia. Na segunda etapa do dia, foi a vez de discutirem a temática “universidades e o compromisso com verdade, memória e justiça”.
A presidente da Andifes, reitora Márcia Abrahão Moura (UnB), chamou a atenção para importância da discussão desses temas para o fortalecimento da democracia brasileira e da autonomia universitária a fim de avançar sempre na qualidade do ensino superior público do Brasil.
Na primeira mesa, sob a mediação do reitor Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR), ex-presidente da Andifes, a palestrante Marina Basso Lacerda, chefe de gabinete do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, dividiu o debate com o advogado Conrado Hubner Mendes, professor-doutor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da USP, que teve participação pelo formato remoto.
Marina Basso analisou o atual cenário nacional, enalteceu as parcerias da pasta com as universidades federais e definiu direitos humanos como “direitos básicos de todos os seres humanos”. Citou, como exemplo, os direitos de igualdade, de fomento à saúde pública e de liberdade de expressão.
Para ela, esses direitos são resultados de lutas e de mobilizações sociais históricas que deram origem a vários tratados ao redor do mundo. É o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), da ONU, respaldada, no Brasil, pela Constituição Federal, em 1988.
Alguns desses direitos, entretanto, observou Marina, estão postos em xeque por alguns movimentos que, em nome da família e do Estado mínimo, espalham discursos de ódio, têm posicionamentos contrários à ciência, à diversidade, à proteção ao meio ambiente e que tentam aniquilar os direitos humanos.
Segundo ela, o Ministério vem se esforçando para adotar políticas públicas voltadas para igualdade social, educação e direitos humanos, colocando em prática diretrizes traçadas em parcerias com universidades e demais instituições. “É a volta do debate racional na construção do monitoramento e na execução dessas políticas”, afirmou.
Já Conrado Hubner Mendes falou sobre “investidas” do governo anterior contra as liberdades de expressão e acadêmica, agravando as ameaças à democracia brasileira que vive sob ataques há quatro décadas.
Nesse contexto, Mendes afirmou ter sido vítima de um processo criminal, imposto pela Procuradoria Geral da República (PGR), a seus artigos publicados no jornal. Para o especialista, essa ação foi uma tentativa de intimidar, de silenciar e de ameaçar à liberdade de expressão, não somente do autor dos artigos, mas de toda a comunidade acadêmica, uma vez que o processo foi parar na reitoria da USP, onde ficou engavetada por cinco meses.
Para o advogado, as universidades públicas devem descobrir como promover a liberdade acadêmica diante do avanço de movimentos de extrema-direita ao redor do mundo. “Existem instituições e redes internacionais que já embarcaram em ações de promoção de liberdade acadêmica, como na Alemanha”, disse ele, que cumpre agenda no exterior.
O reitor Ricardo Marcelo Fonseca analisou os posicionamentos dos palestrantes e concordou com a ideia de que as instituições precisam adotar medidas para o fortalecimento da liberdade acadêmica. “Temos que começar a pensar um pouco, mais prospectivamente, sobre o modo de como podemos promover a liberdade acadêmica tão ameaçada”, alertou o reitor.
O reitor lembrou, por exemplo, da perseguição imposta ao ex-reitor Luiz Carlos Cancellier (UFSC), que cometeu suicídio após ser alvo na Operação Ouvidos Moucos, em um desdobramento da Lava Jato.
Compromisso com verdade, memória e justiça
A mesa da tarde, sob o tema “universidades e o compromisso com verdade, memória e justiça”, teve a participação da cientista política Heloísa Starling, professora da faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, do professor e reitor Sandro Amadeu Cerveira (UNIFAL/MG) e do professor associado da Faculdade de Direito da UnB, Cristiano Paixão. A mediação ficou por conta da reitora Raiane Assumpção (UNIFESP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Andifes.
Heloísa Starling iniciou o debate fazendo reflexão crítica ao regime militar, que perseguiu pesquisadores e torturou estudantes até a morte, sendo que alguns corpos estão desaparecidos até hoje.
O entendimento da cientista política é de que a função da universidade pública é de extrema importância para garantir a democracia em razão da relação que ela tem com a história e a memória, do poder que tem de guardar fatos concretos e rigorosos e disponíveis para quem queira acessar e vasculhar o passado. “Essa função da universidade é essencial para nossa democracia”, reforçou.
Com posicionamento semelhante, o professor associado da Faculdade de Direito da UnB, Cristiano Paixão, analisou os fatos históricos do período da ditadura militar, destacando a perseguição às universidades, as políticas de repressão e de violação aos direitos humanos. Paralelamente, o acadêmico elogiou esses temas, colocados à mesa de discussão pela Andifes, que fazem refletir sobre os acontecimentos sombrios e as memórias presentes nas instituições.
O acadêmico analisou a atual conjuntura e disse que há uma crise do regime democrático ameaçando o rompimento desse modelo e com fortes disputas pelas memórias do regime militar. A avaliação é de que, nesse caso, as Comissões da Verdade, criadas pelas universidades, são peças fundamentais para resgatar essas memórias e averiguar a violação aos direitos humanos, consideradas crimes contra a humanidade.
O acadêmico avaliou ainda as anistias concedidas aos culpados, pelos delitos coletivos, no período de chumbo. Para ele, embora essas práticas sejam alternativas para o processo de redemocratização, na busca de conciliação, as anistias indicam, ao mesmo tempo, formas “de proibir de lembrar dos fatos” e colocados na gaveta “do esquecimento”.
Em outra frente, o professor e reitor Sandro Amadeu Cerveira (UNIFAL/MG), disse que a sociedade moderna contemporânea está assentada sobre “o mito” do indivíduo e, sem querer adentrar nos detalhes da democracia, defendeu o modelo de poliarquia, um conceito da ciência política formulado por Robert Dahl nos Estados Unidos.
“O que podemos pensar sobre democracia, talvez, seja aquilo que podemos chamar de democracia liberal contemporânea, que é muito mais uma poliarquia”, explicou. “Para que possamos ter algo, minimamente, chamado de democracia, precisamos que a sociedade não seja monárquica, um único centro de poder, mas que seja poliarquia”, defendeu.
Citando clássicos da ciência política, Cerveira disse que os regimes políticos, incluindo a democracia, são como seres vivos (precários) e que, portanto, estão destinados à morte. “Uma vez estabelecidos e seguros, precisam, continuamente, estar em construção e, para além disso, qualquer regime possui contradições internas”, observou.
No entendimento de Cerveira, a universidade, nesse caso, é um espaço de contradição tanto no senso comum, como na tradição e na religião. “Isso é próprio da característica da possibilidade da universidade de ser contra a hegemonia. Para isso, ela precisa de bens materiais e de recursos, porque que não se faz pesquisa sem dinheiro, não se faz extensão sem dinheiro”, emendou.
Por fim, na mediação do debate, a reitora Raiane Assumpção (UNIFESP) explicou que a universidade é um espaço da diversidade e que, portanto, seu papel também é marcado pelas contradições. “O papel da universidade é poder dialogar um pouco entre a contradição e a institucionalidade para que avancemos diante dos desafios”, finalizou.