UFBA integra esforços pela repatriação de crânio ligado a Revolta dos Malês

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Escravos e brancos se misturam na Praça da Piedade, no Centro de Salvador, em gravura do século XIX: lugar foi o palco da Revolta dos Malês.

Após 190 anos da Revolta dos Malês, o mais significativo levante urbano de escravizados da história do Brasil em prol da liberdade do povo negro, o crânio de um dos rebeldes mortos – provavelmente de um líder – pode retornar ao Brasil e ser enterrado no Campo da Pólvora, após exame de DNA que será coordenado pela professora Vanessa Paixão-Côrtes, do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A UFBA também integra os esforços para repatriação, por meio do principal pesquisador sobre a Revolta dos Malês no Brasil, o historiador João José Reis.

O crânio do rebelde foi roubado de um hospital na Bahia e levado para os EUA por um diplomata americano para ser utilizado nos estudos de eugenia, que buscavam promover teorias racistas “científicas” e relações entre biologia, craniometria e desigualdade racial. Durante quase dois séculos, permaneceu no Museu Peabody de Arqueologia e Etnologia da Universidade de Harvard.

Agora, esforços para repatriar o crânio estão em andamento. Um comitê de Harvard recomendou que os restos mortais de outros indivíduos presentes na instituição sejam devolvidos às comunidades descendentes ou repatriados. No Brasil, a busca pela repatriação encontra a liderança do Centro Cultural e Islâmico da Bahia, fundado e presidido pelo sheik Abdul Hameed Ahmad. Ele faz parte de um grupo chamado Arakunrin, (“irmão”, em iorubá). O desejo é promover um enterro digno, que observe os ritos islâmicos.

UFBA integra grupo Arakunrin

O principal pesquisador sobre a Revolta dos Malês no país, o historiador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) João José Reis, contatou  colegas de Harvard, onde lecionou em 2012, dando início a uma campanha pela devolução do crânio, mas o grupo terminou constatando que “nos últimos dois anos, o Museu Peabody atrasou sistematicamente as negociações de repatriação”. Reis, Ahmad e os outros pesquisadores do grupo Arakunrin recorreram então ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, que se juntou às negociações, com Harvard, no final de 2024.

“Foi exatamente quando o Itamaraty entrou na jogada que o processo começou a andar, depois de mais de dois anos de negociação entre a comunidade islâmica e eu próprio aqui da Bahia, com a Universidade de Harvard. Um diálogo entremeado de longos silêncios. A partir do momento em que a diretora do Peabody Museum da Harvard participou de uma reunião com o grupo e uma representante do Itamaraty, foi quando o processo de repatriação começou realmente a destravar. Porque Harvard reconheceu no Itamaraty um interlocutor legítimo. Para eles, nós não seríamos esse interlocutor legítimo. Nem mesmo a comunidade islâmica da Bahia, um completo desrespeito” considera Reis.

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O que ainda pode estar travando

O professor acrescenta que existe o chamado “crânio Malê”, em torno do qual se formou esse grupo de apoio para negociar o seu retorno, mas existe outro crânio que foi levado do Rio de Janeiro, em relação ao qual o Arakurin não tem nenhuma ingerência.

“Uma das coisas que me parece que pode estar travando essa devolução é que Harvard quer saber quem seria que ela define como “comunidade” legitimamente estabelecida para receber o crânio do Rio de Janeiro. No caso da Bahia, isso já está estabelecido, inclusive com o aval do Itamaraty e outros ministérios que se envolveram posteriormente na discussão (Direitos Humanos, da Igualdade Racial, da Cultura e da Ciência e Tecnologia), todos concordaram que o destinatário legítimo do crânio que foi levado da Bahia é exatamente a comunidade muçulmana”.

Devolução

A última posição de Harvard é de que a universidade não pretende devolver os crânios sob a Lei de Proteção e Repatriação de Túmulos Nativos Americanos, hipótese inicialmente aventada. Segundo a instituição, Harvard não controla o cronograma para repatriação, que é de responsabilidade exclusiva do governo brasileiro.

“Eu não sei exatamente o que a Harvard quer dizer com isso, talvez porque esteja esperando exatamente que se indique qual é a comunidade receptora desse crânio lá no Rio de Janeiro. Ou esteja relacionado com a organização da própria repatriação, porque como se trata de restos humanos, deve haver uma certa burocracia, inclusive para liberar alfândega, esse tipo de coisa. Então, os detalhes eu não sei. Como sempre, Harvard é muito vaga, mas o Itamaraty possivelmente terá mias detalhes sobre isso”, diz Reis.

Exame do crânio

Assim que o crânio for devolvido deverá ser realizado um teste de DNA para verificar se ele era de fato de origem iorubá ou outro grupo do interior do golfo do Benim que tivesse uma população muçulmana considerável que fora vítima do tráfico negreiro baiano. “Um ladrão de túmulos dificilmente é uma pessoa moralmente confiável, certo?”, ele pode ter mentido sobre a cabeça por ele roubada”, disse  Reis que adianta que esse exame deverá ser coordenado pela professora Vanessa Paixão-Côrtes, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biologia da UFBA.

“Nós vamos receber o crânio, eu já estou em contato com o Itamaraty. A extração do DNA e a análise genômica vai ser feita no Laboratório  de Genômica Populacional Humana, da professora Tabita Hünemeier do Departamento de Genética  e Biologia Evolutiva da USP. Nós vamos analisar, identificar o crânio, tentar descobrir realmente a origem genética desse indivíduo”, adiantou a professora Vanessa Paixão-Côrtes para o Edgardigital.

O pesquisador João Reis fala sobre a importância do exame de DNA. “Então é basicamente para que se confirme que o crânio não seja por exemplo, de um africano de Angola, ou de Moçambique, que também eram nações africanas representadas entre os escravizados da Bahia na época. Então a ideia principal é essa, mas outros elementos serão incluídos nesse exame de DNA, como o sexo do dono desse crânio, o regime alimentar, (talvez seja possível estabelecer qual é o tipo de alimentação que ele costumava ingerir), e coisas dessa ordem. E uma outra ideia é que se faça uma reconstituição facial a partir de programas de reconstituição facial, uma coisa que hoje em dia os computadores fazem, não com precisão absoluta, mas com resultados muito próximos do que seriam as feições desse indivíduo”.

História dos Malês

Segundo informações do professor João Reis, os marcos da história dos Malês na Bahia se referem principalmente à Revolta de 1835. Por exemplo, desde a década de 1980, existe uma rua na Liberdade que se chama “Revolução dos Malês. E, mais recentemente, houve a mudança do nome da Ladeira da Praça para a Ladeira Revolta dos Malês”.

Outro marco importante, ainda segundo Reis, é o local da última batalha da Revolta dos Malês, em frente da igreja da Santíssima Trindade, em Água de Meninos, que é uma igreja que já foi dessacralizada, não funciona mais como um templo católico. “Ironicamente, aliás, exatamente em frente a essa igreja católica, os muçulmanos foram derrotados”, lembra.

“Em relação a nomes de ruas já existentes, temos, por exemplo, a Mesquita dos Barris, mas eu não saberia precisar, se esse nome decorre de uma marca deixada pela cultura malê ou se é uma coisa anterior vinculada aos mouros, como a Mouraria, por exemplo. Mas a Mesquita dos Barris talvez tenha alguma coisa a ver, embora eu, pessoalmente, não conheça nenhum dado histórico que coloque naquele lugar uma mesquita ou melhor uma casa onde muçulmanos se reunissem para praticar sua religião”, afirma o professor.

Existem ainda informações da tradição oral, de que havia malês associados à  Sociedade Protetora dos Desvalidos, à Irmandade dos 15 Mistérios, em Santo Antônio Além do Carmo e no Candomblé de Bogum, na Federação. “Mas, enfim, seriam fatos que podem ter se verificado depois da Revolta dos Malês, porque, é possível que, por razões não religiosas, alguns malês tenham participado dessas instituições de fundamentos católicos”.

Por fim, existe ainda um plano de se colocar um marco no Campo da Pólvora, onde os quatro condenados à morte foram fuzilados depois da revolta. Discute-se a possibilidade de que o crânio Malê seja enterrado, com todos os rituais muçulmanos, na base desse monumento, segundo João Reis. Seria uma oportunidade de marcar os 190 anos da Revolta dos Malês, neste ano de 2025.

Fonte: Ascom/ UFBA