‘Eu quero me tornar um cientista; é meu sonho desde os quatro anos de idade’

Francisco Buiatte, estudante que depende de ventilação mecânica, supera desafios de saúde e se prepara para começar a cursar Engenharia Biomédica na UFU

Francisco Buiatte e sua mãe, na formatura do jovem no ensino médio
‘Eu não quero ser um cientista adaptado, eu quero ser um cientista. Quero realmente ter o conhecimento’, conta Francisco. (Foto: arquivo pessoal/reprodução Instagram)

O período entre semestres é sempre movimentado para a graduação. Estudantes que já entraram na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) aproveitam as férias para descansar e visitar a família, os egressos desfrutam de seus últimos meses na instituição antes da colação de grau, e os novos ingressantes — seja pelo vestibular ou pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) — se deparam com uma nova realidade que viverão pelos próximos anos. Porém, em meio a todas essas pessoas que compõem a comunidade acadêmica, um novo discente chama atenção: Francisco Buiatte, ou “um craque em superação”, como é apelidado em seu perfil no Instagram.

Francisco tem 20 anos de idade e foi aprovado no Sistema de Seleção Unificada (SiSU) para cursar o bacharelado em Engenharia Biomédica na UFU, a partir do semestre letivo 2025/1 — cujas aulas terão início no próximo dia 9 de junho. Entretanto, o processo para chegar até a universidade foi marcado por problemas de saúde, internações em hospitais, luta por acessibilidade e pelo seu direito de ir e vir, além da ajuda de um programa do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU/Ebserh): o Serviço de Atenção Domiciliar (SAD).

A história de Francisco

Francisco Buiatte é um jovem com uma grande sede de conhecimento e o sonho de se tornar cientista, assim como diversos estudantes e recém-chegados na universidade. Apesar dos mesmos objetivos, sua trajetória de vida foi muito diferente daqueles com quem compartilha os projetos pessoais.

Aos seis anos de idade, Francisco passou por um acidente doméstico: o garoto subiu em uma cadeira para ligar a televisão da casa de sua avó e sofreu uma queda, batendo com o pescoço na quina de uma mesa. Ele não contou sobre o acidente para a sua mãe; afinal, era coisa de criança. No entanto, três dias depois, levantou da sua cama se arrastando, caiu e desmaiou.

No hospital, veio o diagnóstico: exames apontaram uma lesão progressiva entre as vértebras C3 e C4, bem no meio do pescoço. Além disso, também foi detectado um câncer raro, dentro da medula do garoto, com um prognóstico preocupante. “Esse era apenas o quinto caso registrado no hospital, e os outros quatro resultaram em morte”, narra o estudante.

Com diversos tratamentos realizados, além de uma cirurgia de descompressão medular, Francisco se curou do câncer aos 12 anos de idade, em 2010, mesmo com algumas sequelas, como a tetraplegia e uma saúde extremamente frágil. Por conta desta condição e de sua dificuldade para respirar, ele deveria fazer nebulização (também chamada de inalação) uma vez por ano. Em um desses casos, um erro médico fez com que o remédio entrasse pelo seu nariz e o garoto aspirou o medicamento, ou seja, o produto foi para os pulmões.

O acidente provocou três paradas respiratórias e uma cardíaca, assim como a perda do músculo do diafragma, falta de oxigenação no cérebro e uma pneumonia infecciosa no hospital. Ele relata que acordou entubado, com cateteres e sonda gástrica, além do equipamento de ventilação mecânica. Ao todo, foram 32 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e mais algumas semanas internado na pediatria.

“Minha casa teve que ser toda readaptada para mim, com equipamentos, acessibilidade, dentre outras coisas. Eu tinha praticamente uma UTI em casa, e só voltei a comer sem sonda depois de seis meses”, completa. Após isso, foram 25 tentativas de sair da ventilação mecânica. “No ano passado, ele quase saiu, só que não conseguiu. Mas a gente segue firme”, conta Márcia Aparecida, mãe de Francisco.

No início de 2022, o jovem, já no ensino médio, passou a ter um problema de visão embaçada que piorou progressivamente. Foram várias teorias e visitas a hospitais e consultórios médicos, sem nenhuma condição detectada nos olhos; apenas com a possibilidade de um problema no sistema nervoso central, no cérebro, ou uma doença autoimune. Ainda no meio do ano, Francisco acordou sem visão alguma e ficou um mês inteiro cego. Após mais uma internação e tratamentos intensivos, sua visão retornou parcialmente.

Ainda no ano de 2022, ele voltou a ter uma perda progressiva de visão e retornou com os tratamentos, sem ser internado dessa vez. Após a quinta sessão, sentiu uma forte dor de cabeça durante a noite, mas tomou um remédio e foi dormir. Ao acordar, já estava internado no hospital. “Quando acordei, estava no hospital sem saber o que tinha acontecido. Minha mãe depois me contou que eu tive uma isquemia cerebral [bloqueio de fluxo sanguíneo no cérebro, o que pode levar a um acidente vascular cerebral, ou AVC]. No primeiro dia, eu convulsionei e perdi a consciência. Depois de tudo, perdi 30% de massa encefálica, novamente a visão de um dos olhos e metade da visão do outro”, detalha.

Sua trajetória acadêmica até o colegial foi feita no campus de Uberlândia do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM) e marcada não só pelas suas questões de saúde, mas pela vontade de estudar e o sonho de se tornar um cientista. Apesar de não conseguir acompanhar as aulas com frequência, e até ter algumas aulas na biblioteca em vez da sala de aula, por conta da falta de acessibilidade, ele ressalta que seu desejo agora na UFU é conseguir acompanhar as aulas no campus. Francisco também conta que, mesmo não estando em sala de aula, sempre estudou em casa, por meio de videoaulas.

“Antes do AVC, eu até conseguia pegar as coisas bem, mas eu nunca mais consegui ter tanta memória depois. Antes, eu via um vídeo gigantesco e conseguia aprender tudo! Hoje em dia, preciso ver um vídeo pequeno, e minha memória ficou mais fraca. Eu preciso estudar muito mais hoje em dia, para adaptar os neurônios que tenho hoje para fazerem o que os outros faziam, mas isso não é problema não!”, aponta o craque em superação.

‘(O Enem) Foi a prova mais difícil da minha vida’
Imagem da aprovação de Francisco no SIsU 2025/1

Mesmo com os desafios, a vaga veio na chamada regular, o que rendeu muita celebração e empolgação para entrar na UFU, de acordo com Márcia. (Imagem: arquivo pessoal/reprodução Instagram)

Francisco cogitava duas opções de curso: Engenharia Biomédica e Biotecnologia. Apesar das semelhanças de ambas, ele escolheu a primeira justamente por conta de si mesmo, e por “querer entender o corpo humano por completo”, conforme descreve.

Ele também conta que o Enem foi uma prova de resistência, devido à quantidade de perguntas, à necessidade da sua concentração e também da postura do seu corpo, além de precisar do auxílio de pessoas para a leitura dos textos e das perguntas. “Eu tinha pessoas para ler e escrever. A Redação demorou mais porque eu tinha que soletrar tudo e indicar a pontuação! Tinha treinado muito nas redações, tirei 900 em todas; mas essa do Enem foi muito mais difícil”, compara.

Márcia tinha o direito de entrar na sala com ele para a realização da prova, por conta da necessidade de assistência em questões como a aspiração, mudança de postura do corpo, ajuste do tubo de ventilação, alimentá-lo por conta da hipoglicemia, dentre outras questões. Ela é testemunha do cansaço pelo qual o filho passou: “Sinceramente, quando você mesmo lê, é muito mais fácil do que com alguém lendo para você; eu mesma consegui perceber esse esforço ainda maior dele.”

Acessibilidade: luta, desafios e o papel dela na vida de Francisco e sua família

Márcia também aponta para um detalhe importante: se o Francisco não estiver doente, ele consegue acompanhar as aulas normalmente, mas existem preocupações a respeito da acessibilidade dentro da universidade e de como serão as aulas. “Será que na faculdade será igual no IFTM, que os professores têm a mesma disponibilidade e compreensão com as questões de saúde dele?”, indaga.

A mãe destaca que o jovem sempre demonstrou muito interesse no aprendizado e, por conta disso, os professores eram compreensivos e enviavam materiais para que ele pudesse estudar mesmo longe da sala de aula. Ela também conta que, devido à sua passagem pelo Instituto Federal, a instituição agora possui professores de apoio para estudantes que necessitam desse tipo de assistência. “A gente tem um profissional que senta e escreve para ele, mas agora, para coisas como aspirar, sou eu mesma que faço”, finaliza.

A UFU também possui iniciativas próprias para garantir a inclusão de pessoas com deficiência, como a Divisão de Acessibilidade e Inclusão (Dacin) e o Programa de Atividades Físicas para Pessoas com Deficiência (PAPD), dentre outras, e a acessibilidade dentro dos campi, com rampas para cadeiras de rodas, por exemplo. No caso da Dacin, também há a presença dos monitores, que auxiliam os estudantes em suas atividades acadêmicas — como já foi noticiado pelo Comunica UFU.

‘Se não tivesse o Melhor em Casa, eu estaria hospitalizado até hoje’

“Eu não teria como estudar e realizar nenhum dos meus sonhos; então, o ‘Melhor em Casa’ foi o responsável por me trazer para casa e ter o acompanhamento certo para qualquer doença e quadro que eu tivesse”, sublinha Francisco, que entrou neste programa assim que começou a depender da ventilação mecânica, em 2016. Desde então, o jovem pode estudar, viajar, passear, ou seja, “continuar vivendo”, como resume Márcia: “O Melhor em Casa assegurou o direito à autonomia do meu filho, o direito de ir e vir, e a vida dele de volta.”

O projeto faz parte da iniciativa do Serviço de Atenção Domiciliar (SAD), do HC-UFU/Ebserh. “O equipamento de ventilação mecânica é o que permite o deslocamento dele, e essa é a diferença de uma vida que tem essa oportunidade pelo SAD”, esclarece Laerte Júnior, fisioterapeuta na UFU há 17 anos e que já atendeu o jovem anteriormente.

Laerte explica que o equipamento é uma espécie de pulmão artificial, podendo traçar um paralelo com a hemodiálise. Porém, esse aparelho não é disponibilizado em vários lugares, fazendo com que muitos pacientes precisem viver em hospitais, ou então com uma restrição ao próprio lar, sem poder sair, já que a energia elétrica é indispensável para o equipamento.

Ainda de acordo com o fisioterapeuta, o custo da máquina gira em torno de R$ 40 mil e a duração dela é de cinco anos. Por conta desse valor elevado, não é comum que as pessoas façam a compra dele, e sim aluguem-no, com os valores pagos pela prefeitura. Essa iniciativa também promove o acesso para novas pessoas serem atendidas, já que um leito do hospital é liberado, pois o paciente já pode ir para casa por conta do aparelho.

“Passamos por uma luta diária para que eles vivam a normalidade de cada um. Existem muitos ‘Franciscos’ em hospitais, que poderiam viver em suas casas, mas não vão devido à falta do aparelho”, conta Laerte, que também destaca que ter o Francisco aprovado na UFU é algo mágico.

Aproveitando a deixa, Márcia comenta sobre a falta que programas como o SAD fazem em outras cidades do país. “Fomos fazer um tratamento em Goiânia e ter um acompanhamento do médico especialista na doença dele. Fomos ao shopping e, quando ele estava jantando lá, uma senhora se aproximou chorando e perguntou como e onde ele tinha conseguido o aparelho, porque o pai dela estava preso dentro de um quarto há quatro anos e não tinha um equipamento portátil”, relata.

‘Quantas pessoas com deficiência têm esse direito de estudar assegurado?’
Instagram do Francisco

Francisco conta com mais de 1.200 seguidores no Instagram, onde compartilha mais detalhes do seu dia a dia. (Imagem: reprodução/Instagram)

Apesar dessa necessidade da ventilação, a mãe diz que tenta oferecer uma vida normal ao Francisco, levando-o para sair de casa e visitar outros lugares, como shoppings, parques e cinemas. O equipamento antigo tinha menor autonomia, com apenas duas horas de bateria antes de precisar ser recarregado, porém, de acordo com Márcia, a equipe do SAD proporcionou a Francisco e aos demais pacientes um aparelho com seis horas de autonomia. Isso facilitou o deslocamento de sua família, especialmente em viagens. Geralmente, o destino é a casa da avó de Francisco, que mora a 220 km de Uberlândia. “Essa viagem demorava cinco horas antes, já que precisávamos fazer três paradas em postos para recarregar o aparelho. Hoje em dia, uma viagem retinha é uma beleza, porque vamos direto para o destino, por conta dessa autonomia do aparelho”, celebra.

No entanto, essa liberdade não é algo muito vivenciado por outras pessoas com deficiência. “Quantas pessoas com deficiência têm esse direito assegurado de estudar? Hoje em dia, eu trabalho em hospital, e vejo crianças com deficiências, que talvez são até menores que as do Francisco, que não têm as oportunidades asseguradas. É tudo tão difícil, que alguns pais desistem e param; elas ficam ali no hospital”, aponta.

“Eu nunca pedi facilidade, porque se eu pedir por isso, não vou conseguir chegar e absorver o conhecimento que eu quero. A facilidade que eu desejo mesmo é na questão da acessibilidade. Em quantas escolas passamos e não tinha como entrar uma cadeira de rodas? Eu já tinha perdido meus direitos aí”, argumenta Francisco.

Por fim, Márcia destaca que sente gratidão de estar chegando com o Francisco até onde ele consegue ir, mesmo se julgando falha. Ela também questiona: “E se ele não tivesse essa cota? E se ele não tivesse esse direito assegurado e precisasse concorrer com alguém que nunca passou pelas dificuldades que ele passou? A gente está engatinhando, mas estamos bem melhores do que algum tempo atrás.”

Esse sentimento de gratidão também é compartilhado por Francisco, que acrescenta: “Uma pessoa com cegueira, ventilação mecânica, que perdeu 30% de massa encefálica, chegar até o ensino superior em uma universidade pública, escolhendo o curso que quer fazer e podendo estudar em sala de aula? Antes, era impossível. Então, a gente é muito grato!”

Por: Mateus Batista (Portal Comunica UFU).