Projeto MobiCrowd, realizado em parceria com o Inmetro, integra blockchain, IA e crowdsourcing para reduzir emissões, otimizar a mobilidade urbana e gerar novos negócios

Nos grandes centros urbanos brasileiros, congestionamentos, emissão de poluentes e ineficiência no transporte ainda são obstáculos enfrentados diariamente. Diante desse cenário, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) desenvolveram uma solução inovadora: o MobiCrowd, sistema que integra tecnologias como blockchain, inteligência artificial, redes 5G e crowdsourcing para transformar a mobilidade urbana.
O projeto foi coordenado pelo professor do Instituto de Computação da UFF, Raphael Machado, que também atua como pesquisador no Inmetro. O programa envolve uma lógica inédita, na qual motoristas que dirigem de forma eficiente e sustentável podem ser recompensados financeiramente ao compartilharem voluntariamente dados sobre seu estilo de condução, consumo de combustível e emissões. Além de beneficiar os próprios usuários, os dados podem subsidiar políticas públicas, planejamento urbano e ações ambientais, com segurança garantida por criptografia e blockchains permissionados.
“A gente não olha muito para o nosso veículo como um gerador de dados. A proposta do projeto é passar a enxergá-lo como uma plataforma de produção de informações que pode ajudar a criar modelos de negócio em que todo mundo ganha”, explica Machado, coordenador do projeto.
Primeira fase do projeto
O MobiCrowd começou a ser delineado em 2021, motivado por um edital da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) voltado para a mobilidade urbana. Para Raphael, entender as direções apontadas pelas políticas públicas é essencial para a pesquisa científica: “Quando sai um edital como esse, você percebe uma vocação sendo sinalizada pelo Estado. Nós olhamos para nossas competências e pensamos em como poderíamos avançar na construção de conhecimento e ferramentas que atendessem a essa demanda.”
Ao invés de mirar em uma aplicação única, o grupo optou por desenvolver uma plataforma versátil, capaz de dar suporte a múltiplos usos. Assim, nasceu a proposta de criar um ecossistema tecnológico que pudesse servir tanto para monitorar emissões de poluentes quanto para identificar padrões de direção, detectar buracos em vias, ou mesmo monitorar a saúde de motoristas. O MobiCrowd se mostra uma plataforma adaptável de acordo com a necessidade.
A partir disso, a primeira fase da pesquisa, concluída no final de junho deste ano, resultou na formação do V2Lab – Laboratório de Tecnologias Veiculares, instalado na Escola de Engenharia da UFF, em Niterói. O espaço funciona como um centro de testes em tempo real com infraestrutura de ponta e antenas de rede 5G privativa instalados na universidade, o que garante um ambiente de experimentação de alta performance.
Laboratório do projeto na UFF. Foto: Arquivo Pessoal.
O destaque inicial está na criação de uma plataforma tecnológica capaz de coletar, processar e monetizar grandes volumes de dados veiculares. Foram coletados mais de 200 gigabytes de informações em testes com carros reais e desenvolvidos modelos de inteligência artificial que estimam com precisão as emissões, inclusive considerando a origem da energia no caso de veículos elétricos.
“Essa primeira parte foi muito muito importante para os resultados que temos hoje. Nós reunimos muitas informações sobre a capacidade da plataforma, na captação de dados de consumo e de emissão, por exemplo. O próximo passo é caminhar para obter resultados concretos em larga escala e aplicar isso no mundo real, em parceria com empresas e órgãos públicos”, resume o coordenador.
Diferentes eixos tecnológicos
O desenvolvimento do MobiCrowd se estrutura em três frentes principais que juntas permitem transformar qualquer carro em uma ferramenta ativa de monitoramento urbano e sustentabilidade. A primeira envolve coleta de dados veiculares e pessoais: a equipe criou um dispositivo que pode ser conectado à porta de comunicação do carro para registrar informações como velocidade, nível de combustível, mistura de álcool e gasolina, pressão interna de sistemas e temperatura do motor. Também há um aplicativo de celular que coleta dados de geolocalização, aceleração e a qualidade da pista, além da possibilidade de integrar dados de smartwatches para monitoramento de parâmetros de saúde do motorista.
A segunda vertente é voltada para uma plataforma centralizada em nuvem, que funciona como um ambiente seguro, escalável e de alto desempenho. Nessa infraestrutura, os dados são tratados, organizados e preparados para aplicações futuras. Com a coleta de dados sensíveis, o MobiCrowd observa diretamente as exigências da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Laboratório no Inmetro. Foto: Arquivo Pessoal.
Por último, temos um sistema de monetização com blockchain, com um viés principal voltado para estimular a participação dos usuários e garantir transparência. A cada comportamento considerado positivo, como dirigir de forma segura, economizar combustível ou compartilhar dados úteis, o motorista acumula créditos digitais registrados em redes blockchain permissionadas, com segurança reforçada e proteção à privacidade.
“Nos modelos de negócio que imaginamos, em que parte do sucesso do protótipo envolve esse compartilhamento de dados, premiar o usuário é parte essencial. Uma seguradora, por exemplo, pode dar pontuação e benefícios para quem dirigir de forma segura. Esses créditos ficam registrados em blockchain, garantindo segurança e integridade”, explica Machado.
A monetização pode vir por diferentes vias: incentivos de seguradoras, programas ambientais, parcerias com órgãos públicos ou mesmo plataformas de mobilidade urbana, que recompensem comportamentos sustentáveis com valores simbólicos.
Impactos e próximos passos
Com a primeira fase finalizada e os resultados de laboratório consolidados, o MobiCrowd entra agora em um novo momento: a validação comercial das tecnologias desenvolvidas ao longo dos últimos três anos e meio, com previsão de um investimento adicional de R$ 3 milhões. O objetivo é sair do ambiente controlado dos testes e iniciar a aplicação em contextos reais, com parceiros públicos e privados.
Segundo o coordenador, diversas conversas já estão em andamento com seguradoras, distribuidoras de combustíveis, locadoras de veículos e órgãos públicos, que enxergam na plataforma uma oportunidade concreta de inovação, economia e sustentabilidade: “Nos próximos meses, o projeto entre nessa fase de validação comercial, com novos aportes, novos parceiros, e esperamos que isso vá se consolidando em uma solução robusta, nacional, para que a gente consiga cada vez mais oferecer respostas às necessidades do país”.
A aplicação, prevista para começar em regiões metropolitanas, não se restringe apenas ao Rio de Janeiro, local das pesquisas, uma vez que o projeto não tem restrições geográficas e pode ser implementado em qualquer cidade do país. “A gente construiu uma base adaptável. Não temos nenhuma restrição específica que impeça a implementação em todo o país. Qualquer lugar onde existam veículos e conectividade básica pode usar o sistema. Isso torna o projeto escalável para o Brasil inteiro”, explica o professor.
Cientistas envolvidos na pesquisa durante evento na UFF. Foto: Arquivo Pessoal.
A equipe atual, responsável por executar a iniciativa, é multidisciplinar e composta por 11 pesquisadores atuantes em quatro diferentes Institutos de Ciência e Tecnologia localizados no Rio de Janeiro. Além da UFF e do Inmetro, há pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Secretaria Estadual de Polícia Civil do Rio de Janeiro (Sepol-RJ). O projeto também gerou publicações acadêmicas e orientou 36 alunos em atividades de pesquisa – incluindo graduandos, participantes de iniciação científica, mestrandos e doutorandos –, além de inspirar outras propostas, como a Descarbonize.AI, iniciativa voltada à mobilidade limpa que reúne montadoras de veículos e as universidades federais do Rio Grande do Norte e da Paraíba, sob liderança do Inmetro.
“Esse é o impacto que buscamos para o projeto. É fomentar modelos de negócio em um ambiente que ainda tem muito a ser explorado. A nossa proposta é passar a enxergar o veículo como uma plataforma de produção de dados, capaz de gerar valor para todos os envolvidos. Isso vai desde premiar bons motoristas, até identificar buracos em rodovias, detectar fraudes em postos de combustível ou calcular créditos de carbono. É sobre oferecer uma ferramenta que facilite a criação de soluções inovadoras e sustentáveis para a mobilidade no Brasil”, finaliza Machado.
Raphael Machado é docente permanente do Programa Acadêmico de Pós-Graduação em Computação do IC/UFF. Doutor em Engenharia de Sistemas e Computação (COPPE/UFRJ 2010). É bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq desde 2013 e Jovem Cientista do Estado do RJ desde 2015, tendo publicado mais de uma centena de artigos científicos nas áreas de Segurança da Informação, Análise de Código, Ofuscação, Incorruptibilidade de Software, Marcas d’Água, Criptografia, Complexidade Computacional, Matemática Combinatória e Teoria dos Grafos. Raphael foi coordenador de mais de duas dezenas de projetos de pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico e inovação apoiados por CNPq, Finep, Faperj e Fapesp – tais projetos deram origem não apenas a uma vasta produção acadêmica, mas também, a patentes produtos e serviços utilizados pela indústrias e reconhecidos como “estratégicos” pelo governo federal. Raphael foi chefe do Laboratório de Informática do Inmetro, onde liderou diversas atividades de consultoria e cooperação técnica a empresas e a órgãos do governo, que deram origem a dezenas de pareceres técnicos. Foi coordenador do Programa Profissional de Pós-Graduação em Metrologia e Qualidade do Inmetro, e do Programa Acadêmico de Pós-Graduação em Metrologia do Inmetro.
Por Alícia Carracena (UFF).