Estudo realizado pela UnB revela que falta de renda é principal impeditivo para que mulheres rompam ciclo de violência

Romper o ciclo da violência doméstica vai muito além da coragem. Exige condições reais de recomeço. Uma das barreiras mais difíceis é a dependência financeira, que ainda prende milhares de mulheres em relacionamentos abusivos. É o que aponta o estudo “Independência financeira e violência contra as mulheres: uma análise documental de relatórios institucionais brasileiros”, desenvolvido pela doutoranda em psicologia clínica e cultura da Universidade de Brasília (UnB) Carolina Campos Afonso, servidora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).

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A pesquisa, apresentada no 10º Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra, em Portugal, analisou 10 relatórios nacionais publicados entre 2023 e 2025. Os dados impressionam: 61% das mulheres afirmam que a dependência financeira impede a denúncia de agressões, segundo o DataSenado. Além disso, 52,2% das vítimas têm renda de até dois salários mínimos, 17,1% foram impedidas de trabalhar ou estudar, e 10% não têm acesso ao próprio dinheiro.

Esses números ganham rosto na história de Teliene Rocha, 36 anos, moradora de Ceilândia. Mãe solo de uma menina de seis anos, ela viveu anos de violência psicológica e controle financeiro. “Ele bancava tudo dentro de casa e sempre repetia que eu nunca ia conseguir viver sem ele. Eu dependia completamente e achava que não havia saída. Meu psicológico ficou destruído”, relembra.

O ponto de virada veio de forma inesperada. Convidada por uma tia para ir à Casa da Mulher Brasileira fazer as sobrancelhas, Teliene viu um cartaz anunciando o curso de cuidadora de idosos. “Aquilo acendeu uma luz. Entrei no curso e, no mesmo dia, decidi sair do relacionamento. Fui morar de aluguel com a minha filha e comecei a fazer faxinas para pagar as contas. Foi muito difícil, mas eu consegui terminar o curso”, conta, emocionada.

Hoje, quatro meses depois de concluir a formação, Teliene trabalha como cuidadora de idosos no Hospital de Ceilândia. “Me encontrei nessa profissão. Descobri que sou capaz, que posso cuidar da minha filha e de mim. Hoje pago tudo sozinha: creche, aluguel, água, luz e ainda sonho em fazer um curso técnico de enfermagem ou até uma faculdade”, diz ela, com orgulho.

Segundo Carolina Campos, a pesquisa surgiu da constatação de que, mesmo com o avanço das leis e políticas públicas, os índices de violência permanecem altos. “A raiz do problema está na desigualdade econômica e na divisão do trabalho por gênero, que por gerações colocaram as mulheres em posição de dependência. Entender como isso se mantém é essencial para transformar a realidade”, explica.

Ela destaca que as desigualdades são ainda mais intensas entre mulheres negras, periféricas e com baixa escolaridade, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. “A dependência financeira é mais severa onde há menos oportunidades. Sem renda própria, essas mulheres ficam mais vulneráveis à violência e têm dificuldade de acessar redes de proteção”, aponta.

Para Carolina, a independência financeira é um passo decisivo para romper o ciclo da violência, mas precisa vir acompanhada de políticas de apoio. “A renda própria dá às mulheres poder de escolha, mas é preciso sustentação de creches, moradia segura, formação profissional e redes de apoio. Sem isso, a autonomia se torna frágil e passageira.”

Políticas públicas

No Distrito Federal, programas da Secretaria da Mulher (SMDF) têm transformado esse cenário. Só em 2024, cerca de 6 mil mulheres foram certificadas em cursos profissionalizantes nas áreas administrativa, de cuidados e beleza, entre eles, o mesmo curso que mudou a vida de Teliene.

A secretária da Mulher, Giselle Ferreira, afirma que essas ações têm impacto direto na vida de quem busca recomeçar. “Cada mulher capacitada é uma história de superação. Quando ela conquista sua renda, conquista também a liberdade. Nossos projetos são sobre isso: transformar realidades e romper ciclos de dependência.”

Entre as iniciativas estão o programa Movimente DF, que promove o empreendedorismo feminino e leva capacitação a diferentes regiões administrativas, e os Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) com órgãos públicos como STJ, Senado e CLDF, que já garantiram emprego a mais de 300 mulheres em situação de violência doméstica.

Além disso, espaços como os PróMulher, em Ceilândia, Taguatinga e no Plano Piloto, oferecem cursos, mentorias e acolhimento. Projetos como Mão na Massa, Oportunidade Mulher e Mulheres Mil ajudam mulheres a se qualificarem e gerarem renda própria.

Caminhos de esperança

A doutoranda reforça que o combate à violência de gênero passa por diagnósticos precisos e políticas sustentadas por evidências. “Sem dados, o poder público atua no escuro. Precisamos compreender quem são essas mulheres, onde estão e o que precisam para garantir autonomia real”, defende.

Enquanto isso, histórias como a de Teliene mostram que a mudança é possível. “Hoje eu sei que posso tudo. Não dependo mais de ninguém. Quero que outras mulheres saibam que é difícil, mas é possível recomeçar. A liberdade tem um preço, e ele vale cada esforço”, diz, sorrindo.

Mas Carolina alerta que é preciso pensar além. “A experiência mostra que políticas eficazes não se restringem à geração de renda, mas articulam essa dimensão a condições de proteção social e cuidado. Isso passa pela criação de empregos formais e pelo fortalecimento de redes públicas de apoio que ajudem as mulheres a manter sua autonomia”, reforça 

Para Carolina, garantir moradia digna e o acesso a recursos que permitam verdadeira independência é parte fundamental desse processo. “As políticas precisam considerar as diferenças de raça, território e condição social, porque a desigualdade pesa de forma muito mais forte sobre mulheres negras, periféricas e mães solo. A maternidade, por exemplo, ainda marca um ponto de virada na vida profissional: muitas acabam afastadas do trabalho, perdem renda ou enfrentam dificuldades para voltar depois da licença, o que acaba reforçando a vulnerabilidade econômica”, reforça.

A pesquisa deixa claro que o enfrentamento da violência contra as mulheres precisa estar amparado em diagnósticos precisos e políticas baseadas em evidências. Hoje, uma das maiores barreiras é justamente a ausência de dados completos e integrados sobre o perfil das mulheres em situação de violência. Sem esse retrato fiel, o poder público atua de forma fragmentada, quando o desafio exige uma resposta articulada, intersetorial e comprometida com a equidade de gênero. É um desafio que atravessa fronteiras e exige o compromisso conjunto de instituições de justiça, governos e sociedade civil.

Oportunidades

A professora de empreendedorismo e coordenadora do Hubs Ibmec, Hannah Salmen, explica que a falta de autonomia econômica é um dos principais fatores que aprisionam mulheres em relacionamentos abusivos. Segundo ela, quando a mulher depende financeiramente do parceiro para se sustentar e cuidar dos filhos, a decisão de romper a relação se torna quase inviável. “Essa dependência é usada como forma de controle, seja restringindo o acesso ao dinheiro, seja impedindo o trabalho, o que configura violência patrimonial, prevista na Lei Maria da Penha”, afirma. Hannah lembra que o problema não é apenas econômico, mas também cultural e emocional. “Por gerações, as mulheres foram ensinadas à submissão, internalizando papéis de gênero que as fazem temer o julgamento social, o abandono e a insegurança financeira”, completa.

A economista destaca que a vulnerabilidade econômica é um traço marcante entre as vítimas de violência. De acordo com ela, o fato de mais da metade dessas mulheres ter renda de até dois salários mínimos revela um perfil social marcado pela pobreza e pela falta de oportunidades. “Muitas vezes, a escolha não é entre ficar ou sair, mas entre sobreviver com o agressor ou enfrentar a miséria com os filhos”, observa. Para Hannah, romper o ciclo da violência exige mais do que medidas penais: “É preciso políticas econômicas e sociais que garantam moradia, creches, serviços jurídicos e oportunidades reais de trabalho.”

Na avaliação da professora, a inserção no mercado de trabalho e o incentivo ao empreendedorismo feminino têm impacto direto na redução da violência doméstica. “Quando as mulheres têm acesso à capacitação, crédito e empregos formais, ganham independência e poder de escolha. Programas de microcrédito e formalização já demonstraram que a geração de renda reduz a reincidência de violência”, explica. Ela ressalta que o trabalho formal traz estabilidade e fortalece a autoestima.

Fonte: Correio Braziliense