UFPA se prepara para a COP30 com novo curso de Inteligência Artificial e acolhimento de povos tradicionais

Maior universidade da Amazônia, a UFPA será palco de encontros entre ciência, saberes ancestrais e inovação durante a conferência do clima. Para o reitor Gilmar Pereira da Silva, o maior legado da COP será a mudança de mentalidade acadêmica sobre o papel da Amazônia no mundo

Por Nilson Cortinhas, Um Só Planeta — Belém

Gilmar é o reitor da maior Universidade Pública da Amazônia, a Universidade Federal do Pará — Foto: Alexandre Moraes/UFPA

Com 12 campi espalhados por diferentes biomas da Amazônia e uma comunidade acadêmica que ultrapassa fronteiras territoriais e culturais, a Universidade Federal do Pará (UFPA) se prepara para viver um dos momentos mais emblemáticos de sua história. Sede de atividades da COP30 e abrigo temporário para cerca de 3 mil representantes de povos indígenas do Brasil e do mundo, a instituição transforma seu campus principal em Belém em um espaço de convivência entre ciência e ancestralidade.

Ao mesmo tempo, a UFPA inaugura o primeiro Bacharelado em Inteligência Artificial da região Norte, um marco para a formação de talentos amazônicos capazes de aplicar tecnologia à preservação ambiental e ao desenvolvimento sustentável.

Para o reitor Gilmar Pereira da Silva, o legado da COP30 vai muito além das estruturas físicas que ficarão após o evento: está na capacidade de reformar o pensamento universitário e de consolidar uma nova leitura de mundo, em que clima, direitos humanos e educação ambiental façam parte do cotidiano da sala de aula.

Em entrevista ao Um Só Planeta, o reitor falou sobre os preparativos da universidade para receber a conferência, detalhou a estrutura que abrigará povos tradicionais durante a COP e refletiu sobre o que considera o verdadeiro legado da COP30: a mudança de paradigma na formação acadêmica e científica da Amazônia.

Um Só Planeta: A primeira curiosidade: como é que o reitor da maior universidade do Norte está encarando a COP?

Gilmar Pereira da Silva: A COP é para nós um evento extraordinário em tamanho, a primeira vez no Brasil. A Universidade Federal do Pará (UFPA) é a terceira maior universidade pública do Brasil em tamanho (depois da USP e UFRJ), com um diferencial: nós somos uma universidade com 12 campi em diferentes territórios. Você tem um campus em Altamira, a 900 quilômetros daqui, e tem o campus em Breves, no Marajó, que é muito mais longe, porque a única via de acesso é de barco.

Eu queria demonstrar uma coisa que eu acho curiosa. Quando começou a história da COP no Pará, a grande briga da comunidade científica e das universidades era que não estávamos sendo chamados para a COP. Eu me lembro de ter dito: “Olha, não é problema, porque eu estou no Pará, estou na maior universidade da Amazônia Legal, da Pan-Amazônia. Então, posso não ser chamado por ninguém, eu tenho até a obrigação de chamar as pessoas para fazer isso. Confesso que eu não tinha a dimensão do que era isso naquele momento. Hoje, em 2025, me dou conta do quanto a gente foi ousado. Começamos a nos mobilizar. Eu nomeei uma comissão de cientistas e pesquisadores que estudam o clima, antropologia e sociologia para cuidar do dia a dia dessa coisa da COP já em fevereiro deste ano.

Fizemos um grande evento neste prédio, para um auditório para mais de 950 pessoas, com muita gente em pé e online. Ali marcou. A ministra Marina Silva entrou online, e outras representações do MEC e de outros ministérios estiveram presentes. Ali, a gente viu que era uma coisa muito maior do que estávamos pensando.

Em paralelo, fomos percebendo que a comunidade quer receber aqui a COP. Devemos ter 20 a 25 mil pessoas circulando aqui na universidade. Muita coisa será nos auditórios. E vamos receber também, na nossa área, os povos indígenas do planeta.

Um Só Planeta: Isso é interessante: você vai receber e hospedar em estruturas temporárias? Há uma estimativa de quantas pessoas serão recebidas lá?

Gilmar – Algo em torno de três mil pessoas, comunidades indígenas do mundo inteiro, não só brasileiros. Quem está cuidando disso mais fortemente é o Ministério dos Povos Indígenas. A ministra Sônia Guajajara tem se envolvido pessoalmente, já veio aqui umas três vezes, acompanhando essa situação, montando o auditório.

Um Só Planeta: Será uma estrutura temporária?

Gilmar: É uma parte dela temporária, sobretudo, os alojamentos. Mas também vão usar os nossos auditórios. Vão fazer um auditório que é uma Oca, talvez como legado, porque vão fazer um piso legal e a estrutura será mais simples, mas é um espaço bacana.

A universidade tem uma experiência importante nisso. Nós dissemos: “Vocês não vão conseguir fazer uma coisa desse tamanho sem a UFPA”. Não é arrogância, é porque a UFPA tem um espaço grande e tem a experiência. Hoje, somos chamados para conversar sobre a COP em todos os estados do Brasil.

Campus da Universidade Federal do Pará (UFPA) em Belém — Foto: Divulgação
Campus da Universidade Federal do Pará (UFPA) em Belém — Foto: Divulgação

Um Só Planeta: Queria lhe perguntar sobre a questão do petróleo na Foz do Amazonas, onde pesquisas acadêmicas recomendaram não explorar. O governo acabou liberando a exploração do petróleo, que é uma energia considerada suja. A questão econômica realmente pesa, mas o senhor acha que falta conversar com o povo tradicional, com o ribeirinho, falta escutá-los?

Gilmar: A gente tem lutado muito aqui por isso. Nós temos conversados com as comunidades ribeirinhas em grande quantidade. A universidade tem cerca de 4 mil estudantes quilombolas, um número maior do que muitas universidades do Brasil.

Sobre a questão da Foz, tem de tudo aqui dentro: tem gente que é a favor da exploração, gente que é contra, gente que defende que se estude a questão do petróleo. O reitor fica no meio desse fogo cruzado, então ele não pode expressar uma posição que será associada à posição da universidade.

Mas uma coisa eu concordo com você: as comunidades precisam ser mais ouvidas. As pessoas precisam dialogar mais sobre o que elas precisam na área da saúde e da educação. E como é que elas valorizam o saber delas. É um saber diferente, mas é um saber: o saber da medicina tradicional, da culinária tradicional, o saber da leitura dos rios e marés, o saber da arquitetura que eles fazem as casas dentro d’água e vivem nisso muito bem.

Eu fico imaginando se a gente despisse dos nossos preconceitos para aprender a lidar com essas pessoas. Quando elas vêm, elas nos dão conhecimento. É muito fácil falar das pessoas lá de fora; outra coisa é você estar aqui dentro.

Um Só Planeta: Vi que a universidade lançou um curso relacionado a Inteligência Artificial, algo que a gente não pode realmente virar as costas. Imagino que juntar isso a todo o conhecimento de monitoramento da floresta pode trazer uma questão bem diferente aqui. O que o senhor consegue projetar a curto/médio prazo com este curso?

Gilmar: Fiquei muito feliz. Eu visitei cada campus desta universidade em detalhe. E eu acho que, neste momento histórico, precisamos quebrar paradigmas. Já tínhamos cursos de Engenharia Elétrica, Sistema de Informação, Ciência da Computação. Mas eu me dei conta que precisávamos entender tudo isso.

Uma coisa é você colocar uma disciplina de IA, que quase todos os cursos já têm há um bom tempo. Outra coisa é você fazer um curso que coloca 20, 30 disciplinas de Inteligência Artificial. Você cuida da questão numérica, mas vai cuidar da questão filosófica, da ética, da antropologia. Como é que você aplica isso para a Amazônia?

É importante discutir os bancos de dados da Amazônia. É muito legal, porque uma coisa é alguém de fora colocar uma lei sobre isso. Outra coisa é um menino, uma menina, estudando aqui e colocando nisso luz sobre o dia a dia de uma realidade que ela conhece. Ela vai poder fazer uma comparação muito válida.

Eu estou muito animado com esse curso. Vai começar com 30 vagas este ano e eu estou com a expectativa que vai ser muito concorrido. É o primeiro da Amazônia que está nessa estrutura. A questão do meio ambiente e sustentabilidade será prioridade.

O nosso propósito é que a gente ter um grande banco de dados e que esse curso ajude a mapear, a entender e a contribuir para isso. A Amazônia tem que ser explorada, mas por amazônidas.

Um Só Planeta: Com relação à participação da UFPA na Zona Azul e na Zona Verde da COP, o que que se está imaginando que será possível fazer lá?

Gilmar: Temos uma coisa legal: estamos com um acordo com Brasil, França e as universidades do Amazonas e do Pará. Estamos com um barco que vai sair de Manaus e chegar aqui em Belém, parando em Santarém e Breves. Ele tem 28 camarotes com pesquisadores, cientistas. O ministro da Educação talvez saia de lá. Vão fazer avaliações, discutir os problemas e dialogar com as pessoas.

Essa é uma experiência legal que vai ficar ancorada aqui e que terá vários eventos. Temos a expectativa de que as mais altas autoridades, tanto do Brasil quanto da França, estejam aqui para validar essa proposta, que já é um acordo de troca de legado da França e do Brasil.

Na Zona Azul, conseguimos uma credencial. Vamos fazer um estande, onde quero ter lá alguma coisa de tecnologia para mostrar as nossas experiências. É um espaço pequeno, mas muito significativo. Somos talvez 2 ou 3 universidades no Brasil que têm esse espaço na COP.

Na Zona Verde, o MEC deve fazer um evento. Eu fui convidado para estar em uma mesa com eles para falar da ciência. Vamos fazer esse evento, que ainda não está com o dia certo, mas deve acontecer.

Um Só Planeta: Muito se fala sobre legado da COP, estrutural, administrativo… Para a UFPA, o curso de IA é um legado, mas o senhor consegue imaginar outra coisa que fique?

Gilmar: Quando se fala de legado, eu penso a COP em três momentos. O primeiro, que estamos vivendo, é o pré-COP. O segundo é o quanto estarão os governantes e as autoridades durante aqueles 11 dias.

Mas eu acho que o terceiro momento é o mais importante, e aí sim, veio o legado: a mudança de mentalidade.

Qual o legado para a universidade, para além dos discursos? Essa relação que a gente está construindo com Portugal, com a França, Canadá, México e com os países do mundo é muito significativa. Só neste ano, assinamos mais de 20 acordos de cooperações internacionais com universidades da Alemanha, EUA, Índia, Rússia, China, França, África e Cuba.

O legado maior será de mentalidade. O que vamos conseguir mudar de mentalidade em todo mundo. Como o reitor vai gerir a universidade depois de entender e viver todo esse processo. Como o meu colega professor vai dar sua aula. Se ele vai aproveitar o momento para falar de clima, de direitos humanos, de educação ambiental.

Esse legado, para mim, é mais significativo e mais permanente. O legado das obras é maravilhoso, nosso estado precisa de infraestrutura, mas não é o mais central. O mais central é a mudança de paradigma, a nova leitura de mundo que a gente vai ter. Depois disso, as nossas aulas não podem ser as mesmas.