O herói da redemocratização

CEZAR BRITTO 

O Brasil não pode esquecer o dia de hoje nem o nome de seu principal protagonista, Raymundo Faoro, um dos heróis da redemocratização

OS 30 ANOS DA revogação do AI-5, celebrados neste 17 de outubro, trazem à lembrança a figura exponencial de Raymundo Faoro e o papel exercido pela OAB, que ele então presidia, no processo de redemocratização do Brasil.

Nosso país costuma ser negligente na evocação de seus heróis, a ponto de supor que não os tenha. Trata-se de desvio cultural que gera baixa auto-estima e dificulta a superação de complexos de inferioridade e a afirmação e a crença nos valores da nacionalidade.

Em 1977, vivia o Brasil momento delicado. A ditadura militar, diante da derrota eleitoral acachapante em 1974 para o MDB -que elegeu 16 das 22 cadeiras em disputa no Senado e ampliou suas bancadas na Câmara dos Deputados e Assembléias Legislativas-, fechou o Congresso e editou um pacote de medidas que, entre outras anomalias, criou a figura bizarra do senador biônico.

O objetivo era manter maioria no colégio eleitoral e garantir a eleição do sucessor do general-presidente Ernesto Geisel. O expediente funcionou. No final de 1978, seria "eleito" o general João Batista Figueiredo. O desgaste político, porém, foi enorme.

O fim do milagre econômico, decorrente do quadro econômico internacional, com a primeira crise do petróleo, teve o efeito de mobilizar a sociedade civil contra o autoritarismo. A ânsia pela redemocratização já se fazia notar, com seguidas manifestações em prol de eleições diretas para governadores e presidente da República, anistia e convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.

O general Geisel e seu principal assessor, o general Golbery do Couto e Silva, sofriam dupla pressão: de um lado, a linha dura do regime queria manter inalterado o status quo do regime; de outro, a sociedade civil mostrava-se cada vez mais eloqüente em seus pleitos. A tensão crescia e, se nada se fizesse, o confronto seria inevitável.

Eis que o general Geisel decide lançar um movimento que, a princípio, batizou de distensão política e que depois se chamaria abertura, que, segundo ele, teria que ser lenta e gradual para ser segura. E, como o alvo era a sociedade civil, chamou a OAB para exercer a indispensável interlocução.

Faoro a presidia. E a instituição refletia o inconformismo da sociedade com o quadro político vigente, marcado pela presença do Ato Institucional número 5 -um instrumento totalitário, que permitia ao governante, em nome da segurança nacional, fazer o que quisesse: prender sem mandado judicial, expropriar, negar habeas corpus etc. Em nome da segurança nacional, o AI-5 permitiria até a revogação da Lei Áurea, se assim o entendessem os governantes.

O interlocutor do regime era o então presidente do Senado, Petrônio Portella, um político hábil, que era também advogado e que sabia da representatividade da OAB.

Faoro, abordado, pediu tempo para pensar. Portella lhe disse que não se tratava de mera proposta, mas da única saída pacífica viável para o país.

Faoro encontrou em sua retaguarda descrença e até revolta. Mas endossou o diagnóstico de seu interlocutor e partiu para o cumprimento de sua missão, que não era simples: auscultar a sociedade civil e dela recolher os pleitos fundamentais e encaminhá-los ao presidente da República.

E assim o fez. Quando o general Geisel perguntou-lhe o que queria de seu governo, foi claro e objetivo: "Quero muito pouco, senhor presidente: apenas a restauração do habeas corpus, a extinção dos atos institucionais e o fim das torturas no DOI-Codi, quanto mais não seja para que V. Excia não entre na história como um ditador sanguinário, mas, sim, como o presidente da abertura, "lenta, gradual e segura'".

De cara, conseguiu o restabelecimento do habeas corpus, o que equivalia a pôr fim às torturas. Pleiteou também eleições diretas em todos os níveis, e obteve inicialmente o compromisso de adotá-las para as eleições de governador em 1982, o que de fato ocorreria.

O desfecho fundamental, que criaria as condições para a redemocratização e tudo o que veio com elas -anistia, liberdade de organização partidária, fim da censura e, depois, eleições diretas para presidente-, deu-se no dia 17 de outubro de 1978, com a revogação do AI-5. E é esta data e este personagem, que faleceu em 2003, aos 78 anos, que ora evocamos, num dos capítulos mais densos e significativos da nossa história contemporânea.

O Brasil não pode esquecer o dia de hoje nem o nome de seu principal protagonista, Raymundo Faoro, um dos heróis da redemocratização -e figura máxima entre os que presidiram a OAB.

CEZAR BRITTO, 46, é presidente nacional da OAB (Ordem Dos Advogados do Brasil).

 (Folha de São Paulo – Tendências/Debates – 17/10/2008)