O desafio da universidade pública brasileira, artigo de Herman Jacobus Cornelis Voorwald

"É legítima a demanda por mais vagas na educação superior, mas esta não pode ser entendida como o único propósito da universidade"

Herman Jacobus Cornelis Voorwald assume hoje a função de reitor da Unesp (Universidade Estadual Paulista), onde é professor titular da Faculdade de Engenharia, campus de Guaratinguetá. Artigo publicado na "Folha de SP":

O ensino superior brasileiro iniciou este século com um perfil muito diferente daquele que tinha há pouco menos de 50 anos. Naquela época, cerca de dois terços das matrículas em cursos de graduação eram de instituições públicas, e o outro terço, do ensino privado. No Censo da Educação Superior de 2006, um quarto do total de 4,7 milhões de matrículas foi do ensino público, e três quartos, de instituições privadas.

Os números desse mesmo Censo apontam também outro contraste. No ensino público, as universidades têm 87,1% do total de 1,2 milhão de matrículas. No privado, mais da metade (58%) dos cerca de 3,5 milhões de matriculados não está em universidades, mas em centros universitários, faculdades integradas ou isoladas e centros específicos.

A universidade pública brasileira teve participação decisiva no desenvolvimento do país no século 20. Não há como desvincular esse avanço da criação da USP e da Universidade do Brasil, que hoje é a Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Além da formação de quadros para o desenvolvimento econômico e social, a universidade pública brasileira passou a responder nas décadas seguintes, e com empenho crescente, a outra necessidade fundamental da sociedade contemporânea, que é a pesquisa científica e tecnológica.

Seria interessante se muitos de nossos tomadores de decisão e formadores de opinião dessem alguma atenção aos indicadores internacionais na área de ciência e tecnologia (C&T). Vários desses índices são produzidos por entidades multilaterais, entre elas a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Uma constatação inevitável da leitura desses dados -inclusive para quem só enxerga cifrões- é a estreita relação entre investimentos em C&T e desempenho da economia.

Investir em C&T não é um luxo de países como Suécia (3,7% do PIB em 2006), Finlândia (3,4%), EUA (2,6%), Japão (3,2%), Alemanha (2,5%), França (2,1%) e outros. Investimentos expressivos nessa área são a opção estratégica dos que estão colhendo vitórias incontestáveis na competitividade e no comércio exterior, como Coreia do Sul (2,9%), Cingapura (2,2%) e China, que saltou de 0,6% do PIB em 1996 para 1,4% em 2004.

Não é por menos que, em 2006, a União Europeia, cujos países-membros naquele ano investiram em média 1,84% do PIB em C&T, se propôs a meta de atingir o patamar de 3%. E isso se deu justamente devido a demandas do setor produtivo. A pesquisa científica e tecnológica é desenvolvida nesses países por diversos tipos de instituições, como universidades, institutos e centros especializados e também pela indústria.

É nesse ponto que vale a pena ver outro ângulo da importância das universidades brasileiras. Embora o Brasil mal tenha ultrapassado recentemente o nível de 1% do PIB em C&T, nossa produção científica, que permaneceu nos anos 1980 abaixo do nível de 0,6% da produção internacional, fechou 2007 com mais que o triplo desse índice. São 2% dos trabalhos científicos de todo o mundo publicados nas chamadas revistas indexadas, aquelas de padrões e critérios mais exigentes.

Desse total brasileiro, grande parte corresponde às universidades -44% somente às estaduais paulistas (Unesp, Unicamp e USP), nas quais tem importância fundamental o modelo de autonomia didático-científica e de gestão orçamentária, financeira e patrimonial.

Todo esse quadro mostra a grande responsabilidade da universidade pública brasileira em relação ao desenvolvimento econômico e social do país. Não cabe a ela apenas formar pessoal para o mercado de trabalho. Sua missão se dá em três frentes indissociáveis na concepção e na prática, que são o ensino, a pesquisa e a extensão à comunidade.

No afã de responder a necessidades importantes da sociedade brasileira, muitos tomadores de decisão e formadores de opinião têm demandado à universidade pública apenas a graduação. É legítima a demanda por mais vagas na educação superior, mas esta não pode ser entendida como o único propósito da universidade, que abrange também o ensino de pós-graduação, da qual depende inclusive a expansão de toda a graduação no país.

As necessidades do país em inovação, competitividade, desenvolvimento econômico, conservação ambiental, diminuição de desigualdades sociais e melhoria da qualidade de vida exigem respostas e avanços da universidade pública brasileira, mas sem abandonar sua responsabilidade com o ensino, a pesquisa e a extensão. Esse é o seu maior desafio.
(Folha de SP, 14/1)