UFPB aborda pesquisas antropológicas com crianças

Questões ético-metodológicas em pesquisas com crianças são tema de dossiê do periódico Áltera, editado pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Esta 13ª edição da revista científica reúne 11 artigos principais, dois trabalhos sobre outras temáticas, um relato etnográfico, dois ensaios visuais e homenagem ao antropólogo, pesquisador e professor brasileiro Mauro Koury.

O dossiê foi organizado pelas professoras Emilene Sousa, Flávia Pires e Maria Amoras, respectivamente da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), da UFPB e da Universidade Federal do Pará (UFPA). Esta edição especial da Áltera conta, inclusive, com a participação de alguns integrantes do Grupo de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Criança, sociedade e cultura (Crias), liderado por Flávia Pires.

“Quando a gente inclui as crianças na pesquisa antropológica, enquanto nossos informantes-chave, nativos, interlocutores, colaboradores, o que acontece? Será que podemos trabalhar com os mesmos métodos utilizados com adultos? Será que é preciso adaptá-los? Como fazer para que estes sujeitos tutelados possam participar de nossos estudos, em uma sociedade na qual a voz das crianças é silenciada, irrelevante, infantilizada? Nós apostamos no contrário. Acreditamos que as crianças trazem perspectivas novas sobre a realidade Se esses pontos de vista não são trazidos à tona, os textos antropológicos perdem em inteligibilidade”, analisa Flávia Pires.

De acordo com Emilene Sousa, os 11 principais artigos trazem reflexões sobre a pesquisa com crianças em contextos diversos. “Em movimentos sociais, em uma praia de Cabo Verde, em Moçambique, em conjunturas institucionais de casas de acolhimento ou de prisões, em escolas, em situações de adoecimento, no campo, em deslocamentos pela cidade. Todos estes artigos problematizam as questões ético-metodológicas de suas pesquisas em cada uma das diferentes circunstâncias”, afirma a colaboradora externa.

Segundo a professora da UFMA, o método etnográfico faz uso das técnicas tradicionais da antropologia, como entrevistas, conversas informais e observação em pesquisas de campo com crianças, mas também de procedimentos como desenhos e redações e de instrumentos como gravadores, máquinas fotográficas e câmeras, demonstrando o potencial de métodos combinados e das crianças como co-investigadoras.

“Do ponto de vista ético, os artigos problematizam quais procedimentos éticos temos adotado e como lidamos com a singularidade de pesquisar sujeitos tutelados que não respondem legalmente pelos seus atos, mas que nem por isso deixam de ser entendidos enquanto indivíduos plenos e de direitos”, analisa Emilene Sousa. Para ela, a constituição das crianças como coautoras também nos textos etnográficos – com seus nomes, suas vozes e suas imagens (sejam seus rostos em fotografias ou os desenhos confeccionados por elas) – apontam caminhos que as reconheçam não apenas como agentes construtores da realidade em que estão inseridas, sem desconsiderar as particularidades de cada caso e a capacidade da etnografia de encontrar soluções em cada um destes casos, mas afirmando a importância de sua autoria no texto.

A professora da UFPB Flávia Pires rememora que o dossiê foi gestado na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), em 2020. Ela conta que, para o evento, “eu e Emilene Sousa propomos um Grupo de Trabalho (GT) sobre este tema, porque já há, no Brasil, muitas pesquisas com crianças, nas áreas dos Estudos da Infância, da Antropologia da Criança, da Sociologia da Infância. Mas os trabalhos geralmente têm abordagem genérica. Não há, neles, uma discussão ética e metodológica aprofundada. Por isso sentimos a necessidade de pensar o assunto neste dossiê”, diz a docente.

Na avaliação de Flávia Pires, pesquisar com crianças ilumina o estudo antropológico de um modo geral porque evidencia os dilemas e as saídas que podem ser encontradas. Ela, por sinal, destaca duas pesquisas de fora do Brasil que estão presentes no dossiê. Uma com crianças moçambicanas e outra de Cabo Verde, ambas no continente africano e com populações falantes da língua portuguesa.

“Eu acho isso muito importante do ponto de vista da nossa integração com países que a gente chama do Sul Global, de colonização portuguesa, que sofreram com as questões coloniais que ainda se colocam até hoje. Considero fundamental não só dialogar com pesquisadores que realizam estudos nesses territórios, mas que também pesquisemos com eles, que sofreram e ainda sofrem processos históricos parecidos com o nosso, embora com suas particularidades”, defende a pesquisadora da UFPB.

Embora as pesquisas com crianças tenham crescido consideravelmente nos últimos anos, Emilene Sousa pensa que há muito a se problematizar em relação aos usos dos métodos e das técnicas tradicionais da antropologia nas pesquisas que tomam as crianças como sujeitos principais. Além disso, para ela, questões éticas como as que dizem respeito ao uso das imagens em fotografias, a exposição de seus nomes e de seus desenhos assinados levantam uma série de questões nunca esgotadas pelos estudos da infância.

Para que o dossiê fosse elaborado, Flávia Pires destaca ainda o trabalho da doutoranda do PPGA Christina Gladys e do fotógrafo Thiago Nozi, responsável pela imagem da capa. A capa da revista científica é uma montagem com foto do Thiago Nozi e desenhos de uma criança, a Serena Pires Ayoub. Ela retrata um momento em que a pesquisadora Karla Mendonça leva sua dissertação para as crianças com as quais trabalhou durante seu mestrado. Houve também a colaboração de Núbia Guedes e de Mohana Morais, do Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) da UFPB.

Mônica Franch também é docente do PPGA da UFPB e editora da Áltera, além do docente Pedro Nascimento. Ela adianta que o próximo dossiê terá como tema “Etnografias de uma sindemia: a Covid-19 e suas interações”, organizado por ela e por Sônia Maluf e Soraya Fleischer, professoras, respetivamente, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Universidade de Brasília (UnB).

Sindemia é um conjunto de problemas de saúde intimamente interligados, que aumentam mutuamente e que afetam significativamente o estado geral de saúde de uma população no contexto de persistência de condições sociais adversas, conforme M Singer. O conceito está presente em um ensaio já bastante citado academicamente, de autoria dos pesquisadores José Patrício Bispo Júnior e Djanilson Barbosa dos Santos, para o volume 37 e nº 10 dos Cadernos de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicado no ano passado. O novo dossiê da Áltera trará textos produzidos no contexto da rede de pesquisas Antropo-covid, com sede na UFPB e participação de pesquisadores da UFSC, UnB, UFPA e Unicentro.

Reportagem: Pedro Paz
Edição: Aline Lins
Fotos: Jainara de Souza