O acesso de estudantes indígenas às universidades federais – Por José Geraldo Ticianeli

Por José Geraldo Ticianeli

A Lei 12.711 de 2012, também conhecida como Lei das Cotas, completou uma década e merece a nossa atenção e discussão acerca de seus impactos sociais, nacionais e regionais, em relação aos seus objetivos, metas e resultados. Entretanto, mais que os efeitos produzidos por essa política afirmativa é importante discutir as relações originadas da sua criação e os sistemas de pensamento mais amplos nos quais estão imersas (ANHAIA, B.C., 2019).

Em um país com dimensões continentais, vivenciamos realidades regionais distintas, marcadas pelas divergências sociais, por concentrações populacionais desiguais e pela falta de equidade na distribuição de renda, entre outras características. Dessa maneira, cabe ao governo federal encontrar soluções, por meio de políticas públicas, para um equilíbrio na balança social e econômica permitindo a inclusão e as oportunidades igualitárias para a nossa sociedade.

No campo da educação superior, são indiscutíveis e inegáveis os avanços no acesso de populações historicamente excluídas, como no caso os negros e indígenas, os oriundos de escola pública, de baixa renda familiar e deficientes e, a aprovação da Lei das Cotas, certamente, proporcionou a materialização dessas conquistas estabelecendo a obrigatoriedade da reserva de 50% das vagas nas Universidades e Institutos Federais, podendo ser considerada um conquista direcionada para o processo de democratização, da diversidade, da pluralidade e da igualdade nas IFES brasileiras.
Entretanto, após 10 anos de criação e implantação da Lei de Cotas, acredita-se que o momento é de reflexão sobre os resultados e os caminhos que foram e que ainda devem ser percorridos para que, cada vez mais, possamos aumentar o acesso ao processo educacional brasileiro, partindo da premissa que a Lei de Cotas não deve ser a única com esse propósito, mas que outras políticas afirmativas também possam ser aprovadas e direcionadas para outras áreas da nossa sociedade.

Se partirmos para análise apenas do quantitativo de alunos matriculados, excluindo as diferentes variáveis que essa lei pode alcançar, os dados da pesquisa Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, divulgada pelo IBGE (2018), demonstra que pela primeira vez na história do país, estudantes pretos e pardos são maioria entre os matriculados em instituições públicas de ensino superior.

Além desse indicador, a pesquisa aponta que a taxa de permanência também foi ampliada nas IFES brasileiras, sendo importante, nesse momento, ressaltar que a existência de outras políticas públicas, convergindo com os objetivos da Lei 12.711/2012, consegue, além do acesso, reduzir as taxas de evasão e retenção na educação superior, minimizando os efeitos das desigualdades sociais e regionais na permanência e conclusão da educação superior e elevando as taxas de diplomação na educação superior, com destaque ao Decreto n°. 7.234 de 19 de julho de 2010 que originou o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES.

Outro documento que corrobora tais afirmações, é a quinta edição da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES (ANDIFES, 2018), o qual demonstra que a grande inflexão das IFES brasileiras rumo à democratização do acesso, tanto por critérios econômicos quanto raciais, foi positiva ao longo dos anos, identificando mudanças no perfil socioeconômico e cultural dos estudantes através de inúmeros indicadores comprobatórios de que o ensino superior federal havia se tornado mais acessível, popular e inclusivo.

Todos os dados acima, demonstram a importância da existência e permanência da Lei 12.711/2012 para a democratização das IFES brasileiras, mas é importante trazer à luz das discussões recentes formas de acesso, incluindo nesse processo grupos sociais historicamente excluídos por questões étnicas, de origem, de gênero e sexualidade. Além disso, que possamos implantar ações para minimizar as fraudes observadas ao longo dos anos e as inúmeras judicializações dos processos seletivos, garantindo direitos para quem se enquadra na legislação vigente.

Outro ponto que merece destaque, é a importância de ampliar políticas que fomentem a permanência desses estudantes, principalmente no cenário atual quando nos deparamos com o aumento crescente de evasões e trancamentos nas IFES brasileiras. A relação de acesso e permanência das populações historicamente excluídas em ambientes acadêmicos deve convergir para um único caminho, onde uma política pública deve ser tão importante quanto a outra.

No que tange as diferentes populações descritas no Art. 3º Lei 12.711/2012, observamos diferentes características nos perfis de ingresso decorrentes da diversidade étnica e cultural de cada unidade da Federação. Em alguns estados, o percentual de ingressantes pardos ou pretos predominam em relação aos demais candidatos. No caso do Estado de Roraima, com uma população estimada de 652.713 (IBGE, 2021), encontra-se a maior população indígena do país, onde mais de 50 mil indivíduos se autodeclaram indígenas, sendo a maioria deles residentes no município do Uiramutã, onde está localizada a terra indígena Raposa Serra do Sol, concentrando 88,1% da população indígena do estado.

Em Roraima existem 32 terras indígenas, sendo elas: Ananás, Anaro, Aningal, Anta, Araçá, Barata, Livramento, Bom Jesus, Boqueirão, Cajueiro, Canauanim, Jabuti, Jacamim, Malacacheta, Mangueira, Manoa / Pium, Moskow, Muriru, Ouro, Pium, Ponta da Serra, Raimundão, Raposa Serra do Sol, Santa Inez, São Marcos, Serra da Moça, Sucuba, Tabalascada, Trombetas / Mapuera, Truaru, Waimiri-Atroari, Waiwái e Yanomami.

Dessa maneira, é indiscutível o papel e a importância da Lei de Cotas para o acesso da população indígena ao ensino superior, sendo essa uma das bandeiras da luta dos povos indígenas no diálogo com os governantes ao longo dos anos. Ferreira (2001, p. 101) afirma que “o direito à educação diferenciada e específica tem sido uma das principais bandeiras do movimento indígena, dentro dos ideais da autodeterminação”, sendo essa luta histórica um dos fatores determinantes para o surgimento de experiências de formação diferenciada para indígenas no país.

Participando ativamente dessas discussões e ciente da sua importância estratégica em um dos estados mais jovens do país, mesmo antes da publicação da Lei de Cotas em 2012, a Universidade Federal de Roraima (UFRR), foi a primeira a criar em 2001 uma unidade acadêmica específica para a formação superior indígena, o Instituto Insikiran, iniciando com o curso de Licenciatura Intercultural e, posteriormente, o Curso de Saúde Coletiva Indígena (2009) e o de Gestão Territorial Indígena (2012). Todos esses cursos possuem como objetivo principal a formação profissional dos indígenas, de modo específico, diferenciado e intercultural, sempre discutindo e articulando com as principais lideranças, professores, comunidades e organizações indígenas de Roraima e a sociedade em geral.

De acordo com Freitas (2017), o Instituto Insikiran, cujo nome tem origem na mitologia dos povos indígenas que habitam o Monte Roraima, o povo Macuxi, é um dos filhos guerreiros de Makunaimî, irmão de Anikê, surgiu para atender a uma das demandas dos povos e comunidades indígenas de Roraima que reivindicaram o acesso ao ensino superior por meio da Carta de Canauanim, elaborada em 2001, na Assembleia Geral da Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIRR), e a UFRR, ciente das suas responsabilidades, respondeu ao compromisso social à luta dos indígenas de Roraima.

Em 2003, antes do advento da Lei das Cotas, com objetivo de atender uma demanda das comunidades e povos indígenas de Roraima, que reivindicavam acesso aos cursos de Medicina, Economia, Direito, Engenharia, Agronomia, Administração, dentre outros, a UFRR lançou o Processo Seletivo Específico para Indígenas (PSEI) através da aprovação da Resolução 008/2007-CEPE (19/12/2006).

A origem do PSEI é uma conquista das comunidades indígenas e deve ser celebrada como ponto inicial de uma série de ações cujo objetivo é o fortalecimento e a democratização do ensino para a educação superior indígena. De acordo com Silva (2009 apud Freitas, 2017), ao dizer que, “por outro lado, avaliamos que a participação indígena foi muito positiva. Os maiores desafios consistem em fazer com que esse conjunto de ações se transforme em estratégias comuns, que apontem para um novo modelo de nivelamento das informações, empregando o método participativo pela concretização de política que de fato fortaleça o movimento indígena”.

Entretanto, mesmo depois da publicação da Lei de Cotas e com diferentes políticas afirmativas diferenciadas em diversas universidades, o Censo da Educação Superior (INEp 2020), apresenta um aumento paulatino na declaração da cor preta/parda, que parte de 35% em 2011 e alcança o percentual de 46%, em 2020. A declaração da cor branca, por sua vez, apresenta decréscimo, saindo de 62%, em 2011, para 52%, em 2020; e a cor amarela/indígena mantém declaração constante de 3% ao longo do período, ou seja, não observamos, segunda dados oficiais um aumento significativo nesse importante indicador de acesso, onde o critério de indianidade é o autodeclarado pelo estudante, afirmando a sua condição de pertencimento étnico.

Esses dados permitem uma reflexão sobre o papel finalístico da Lei de Cotas e a sua homogeneização para a diversidade, não prevendo ou permitindo o reconhecimento sobre a não uniformidade dos segmentos sociais e étnicos. No caso da educação indígena, apenas como exemplo o Estado de Roraima com 32 terras indígenas, a diversidade é imensa com diferentes culturas, linguagem e perspectivas históricas. Segundo Baniwa (2013) “para que a Lei venha a atender os direitos indígenas em suas demandas e realidades é necessário que sua aplicação esteja pautada sobre os direitos coletivos, os processos específicos e diferenciados de ingresso, a relevância da diversidade e de programas de acompanhamento, tutoria e apoio a pesquisas comunitárias dos estudantes indígenas que os mantenham conectados e envolvidos com suas comunidades”.

Mesmo diante dessas reflexões, cujo objetivo são estimular o debate para melhorias no acesso à educação e, nesse contexto ressaltar a importância das universidades públicas brasileiras neste contexto, não podemos deixar de evidenciar a importância da Lei de Cotas para acesso de minorias à educação superior e comemorar os seus dez anos cujos números e histórias de vida demonstram a sua importância para inclusão.

Freitas (2017) define esse processo da maloca à universidade, como um longo percurso de luta e resistência dos netos de Makunaimî, onde a Lei das Cotas teve um papel fundamental nesse processo, sobretudo no que diz respeito aos processos identitários e autonomia na luta pelo acesso à educação superior.

José Geraldo Ticianeli é reitor da Universidade Federal de Roraima. 

Bibliografia
ANDIFES – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES. Brasília: ANDIFES, 2018.
ANHAIA, B.C. A “Lei de Cotas” no ensino superior brasileiro: reflexões sobre a política pública e as universidades federais. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre 2019.
BANIWA, G.A Lei das Cotas e os povos indígenas: mais um desafio para a diversidade. Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano. p. 18-21.jan. 2013
FERREIRA, M. K. L. A educação escolar indígena: um diagnóstico crítico da situação no Brasil. In: Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola. Aracy Lopes da Silva e Mariana Kawall Leal Ferreira (Orgs.). São Paulo: Global, 2001.
FREITAS, M.A.B. Insikiran: da política indígena à institucionalização da educação superior. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus 2017.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2018.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico. Rio de Janeiro: IBGE, 2021.
SILVA, A. A. O Programa E’ma Pia por uma ótica indígena. In: Acesso e permanência de indígenas ao ensino superior: o Programa E’ma Pia. Maria Luiza Fernandes; Fábio Almeida de Carvalho; Maxim Repetto (Orgs.). Boa Vista: Editora da UFRR, 2009.