A história do Brasil, os vários olhares as versões sobre 7 de setembro e a fundação de uma monarquia na américa – Por Ariane Sá

Análise sob olhar de historiadores traz abordagens variadas.

O 7 de setembro é a data cívica em que se comemora a independência do Brasil. Entretanto, como todo fato referência, essa história é permeada de disputas relacionadas a verdades e a versões. A historiografia menciona algumas datas simbólicas de fundação do novo império nos trópicos. Todas relacionadas a figura do príncipe português D. Pedro de Alcântara, cuja regência foi estabelecida em abril de 1821, devido ao retorno de D. João VI a Europa, após 13 anos de permanência no Brasil.

Os meses que antecederam a proclamação da independência foram marcados por avanços e recuos de negociações realizadas entre Portugal e a regência instalada no Rio de Janeiro. O primeiro mês do ano de 1822 deu o tom dos embates que ocorreriam entre D. Pedro e as “Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa”, convocadas em 24 de agosto de 1820 na cidade do Porto e instaladas em janeiro de 1821 em Lisboa. No dia 9 de janeiro de 1822, em desobediência às Cortes, D. Pedro decide “ficar” no Brasil. Daí em diante, os acontecimentos de rupturas com Portugal se intensificaram em meio a um ambiente marcado por tensões, incertezas, hostilidades, prisões, deportações e guerras de independência que perduraram até 1823 e resultaram na morte de cerca de 3 mil pessoas.

A independência em quatro atos

Após muitos confrontos e descumprimentos às ordens advindas de Portugal, em 3 de junho de 1822, D. Pedro convoca a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa. Para os contemporâneos, essa era uma evidência de que o Brasil teria uma ordenação jurídica, administrativa e institucional dissociada daquela que estava sendo elaborada pelas Cortes em Lisboa. Ainda vigorava a ideia de que Brasil e Portugal poderiam conviver politicamente como dois reinos com direitos e deveres recíprocos. Entretanto, para as Cortes e a imprensa portuguesa, esse ato de D. Pedro significou que o Brasil estava se separando, de fato, do império ultramarino.

A convocação da Assembleia Constituinte seria a primeira ruptura que, associada aos manifestos publicados em agosto, sendo um atribuído a ala mais liberal e radical do movimento de independência, vinculada a Gonçalves Ledo, “Manifesto aos Povos do Brasil” (1¬º de agosto) e o outro a ala mais conservadora de José Bonifácio, “Manifesto do Príncipe Regente aos Governos e Nações Amigas” (6 de agosto), selavam o destino de um Brasil independente de Portugal.

A segunda ruptura foi o dia 7 de setembro de 1822, posteriormente definido como o marco inicial de fundação do império brasileiro. O relato mais conhecido é feito pelo padre Belchior Pinheiro de Oliveira, que narra o acontecimento ocorrido numa colina na província de São Paulo, próxima ao riacho do Ipiranga. Eis parte da conversa que teria mantido com D. Pedro:

“Foi nessa altura, no lugar denominado Moinhos, que dois correios da Corte se aproximaram açodadamente […]. Entregaram importantes papéis ao príncipe. O príncipe mandou ler alto as cartas […] eram elas: uma instrução das Cortes, uma carta de Dom João [chegadas de Portugal], outra da princesa, outra de José Bonifácio e ainda outra de Chamberlain… Dom Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os, deixou-os na relva. […] Segundo o relato, D. Pedro teria dito: “Padre Belchior, eles o querem, eles terão a sua conta. As Cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de ‘rapazinho’ e de ‘brasileiro’. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações; nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal”.

De acordo com a narrativa do vigário, a comitiva teria comemorado: “Viva a Liberdade! Viva o Brasil separado! Viva Dom Pedro!”. Então, “O príncipe virou-se para seu ajudante de ordens e falou: ‘Diga à minha guarda, que eu acabo de fazer a independência do Brasil. Estamos separados de Portugal’”.

No entanto, a celebre frase que remete ao fato não é lembrada pelo Padre Belchior e sim por dois membros da comitiva de D. Pedro que contava, no máximo, com 14 pessoas. O alferes Francisco de Castro Canto e Melo, irmão de Domitila, futura Marquesa de Santos, posteriormente escreveu que Dom Pedro teria falado de forma vigorosa, ao descer da colina e retornar a venda onde estava a tropa, a seguinte frase: “Independência ou morte! Estamos separados de Portugal!”. Já o Coronel Manuel Marcondes relatou ter ouvido uma frase bem mais elaborada: “Brasileiros! A nossa divisa de hoje em diante será Independência ou Morte! E as nossas cores, verde e amarelo, em substituição às das cortes”

Uma data somente consolidada anos depois

Seja como for, a escolha do 7 de setembro como data da independência somente passaria a constar no calendário de comemorações cívicas do Brasil em 1826. O silêncio dos contemporâneos sobre os dois fatos reverberou durante anos entre os historiadores que encontraram menção a ambos apenas em dois jornais da época. De acordo com Lúcia Neves, o Jornal Macaco Brasileiro referiu-se ao 3 de junho como “magno aniversário, o dia natalício de sua regeneração política” [….] “foi quando estalou o elo da corrente da dependência servil e colonial”. E o jornal O Espelho, em 20 de setembro de 1822, faz um breve comentário sobre o dia 7 de setembro.

Maria de Lourdes Viana Lyra e Isabel Lustosa, intrigadas com o hiato que se estabeleceu entre o fato e o reconhecimento de sua importância histórica, em suas pesquisas, constataram que a data do 7 de setembro foi resgatada no Tratado de Paz e Aliança de 1825, em que Portugal reconhecia o Brasil independente mediante o pagamento de uma vultosa indenização de 2 milhões de libras esterlinas.

Na negociação chancelada pela Inglaterra, Portugal exigia que a independência deveria constar como tendo sido concedida por D. João VI, então reconhecido como imperador do Brasil, mas que se fizesse constar que abdicava desse direito ao trono em favor de seu filho, posto que o ato foi um feito de D. Pedro. Assim, retirava-se de cena os brasileiros, a participação popular, as guerras de independência e a violência da repressão. A independência tornava-se obra da dinastia de Bragança.

Apesar da consolidação do 7 de setembro como momento fundante do novo país e do império brasileiro, é importante ressaltar duas datas que fazem parte de um contexto mais amplo do processo de formalização da independência. No dia 12 de outubro, aniversário de 24 anos de D. Pedro, foi promovida a aclamação do imperador constitucional do Brasil. Foi uma solenidade cívica, com intensa participação popular, com cortejos e vivas entusiasmados da população reunida no largo de Santana. Para os contemporâneos, uma data mais simbólica de rompimento dos laços com Portugal. Repercutiu em todo o reino e o ato foi reproduzido em datas diferentes em várias províncias. Na Parahyba do Norte, em 28 de novembro de 1822.

Na sequência dos acontecimentos, em jornais e no Senado, os liberais começaram a definir um papel para o imperador que o desagradou imensamente, o de desempenhar o “sublimado emprego de imperador constitucional”. D. Pedro, aclamado imperador, ao tempo que tentava encarnar o espírito ilustrado da época, não conseguia superar a tradição absolutista de sua formação e se reaproxima dos conservadores e, em nome da ordem, fecha jornais, prende, deporta políticos e jornalistas acusados de republicanos ou anarquistas.

Em 10 de dezembro, os conservadores concebem uma 2ª cerimônia inaugural, a coroação de D. Pedro I, que ocorre de forma quase privada, seguindo a tradição e pompa do Antigo Regime. Na solenidade, o imperador faz um discurso que dará os limites do seu liberalismo e das concessões políticas que estava disposto a fazer na condução do país. Afirma que jura “defender o vasto império do Brasil …… a liberal constituição digna do Brasil e digna do seu imortal defensor como pedem os votos dos verdadeiros amigos da Pátria”. Durante os 9 anos que reinou o Brasil, a principal pauta política foi a centralização política e a federação, o favoritismo real dos portugueses que ocupavam os principais cargos políticos, administrativos e militares, a censura à imprensa e a prisão dos oposicionistas.

A encenação do fato

Escolhido como ato fundante do novo império, em 1826, o 7 de setembro passou a constar como data festiva do Império. A cena idealizada às margens do Ipiranga tinha por finalidade traduzir os propósitos do projeto político de estruturação de um estado conservador que deveria, acima de tudo, preservar o modelo colonial de acesso a terra, que é revisado e reforçado em 1850, e a escravidão, que somente é abolida em 1888. Dessa forma, incorporava-se os princípios econômicos liberais ingleses, mas evitava-se avançar nas garantias e liberdades individuais francesas.

O fato retorna a cena quando, em 1886, o paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Melo é contratado para enaltecer a memória da decadente monarquia brasileira. O pintor imortalizou “O grito do Ipiranga” na tela “Independência ou Morte”. Antecipando-se as críticas, em um texto de sua autoria O Brado do Ypiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil (1888), afirma que “a realidade inspira, e não escraviza o pintor”. Por isso, em sua escolha estética de representação, cometia “uma violência à topografia”, ao retratar a cena tão próxima ao Rio Ipiranga e que não convinha colocar D. Pedro sobre um asno, pois não seria digno da “importância do cavaleiro”, tampouco, referir ao “incômodo gástrico” por ser uma menção “indigna da história, contrária à intenção moral da pintura”. A nova narrativa do fato trazia para o centro da cena disposta no quadro a bravura do fundador do império e representante da Casa de Bragança, D. Pedro I, pai do imperador D. Pedro II e avó de sua sucessora, a princesa Isabel. A mensagem retratada pelo pintor não alcançou as vistas dos que estavam nos quarteis, tampouco o recado chegou aos ouvidos dos republicanos. Um ano após a exposição da tela em Florença, em 15 de novembro de 1889, o Brasil tornava-se um país republicano.

O quadro de Pedro Américo começou a cumprir seu papel de trazer um sentido histórico a ideia de independência do Brasil nas comemorações do centenário em 1922. Na intenção de reforçar sua importância no cenário nacional, o Partido Republicano paulista propagou a pintura como uma forma de destacar o lugar de origem da nova nação a partir de São Paulo, onde teria havido o grito de independência às margens do riacho do Ipiranga. Os intelectuais da Semana de Arte Moderna, por sua vez, utilizaram-no para afirmar a brasilidade em contraposição a cultura lusitana.

Na comemoração do sesquicentenário, em 1972, a ditadura militar realçou a presença da guarda imperial na cena com a clara intenção de naturalizar um país comandado por fardados. Nos livros didáticos, considerando a vinculação crescente entre cultura e propaganda política, a tela passou a representar o momento fundante da nação brasileira – tema de grande complexidade posto que alguns historiadores defendem que a identidade nacional começa a se construir a partir da abdicação de D. Pedro I em 7 de abril de 1831.

Os labirintos que o caminho do Ipiranga não revelou

As novas gerações de historiadores têm buscado algumas respostas para elucidar aspectos da história que ainda não foram pesquisados sobre a independência do Brasil. Para refazer o percurso que a historiografia trilhou entre os séculos XIX e XX, balizado pela discussão em torno da ideia de continuidades e descontinuidades que marcaram o processo de independência do Brasil de Portugal, as pesquisas avançam no sentido de analisar os movimentos de adesão das elites locais, conflitos constitucionalistas e anticonstitucionalistas que marcaram os anos vinte, o papel das mulheres, dos livres pobres, escravizados, o familismo e a diversidade econômica. Esses caminhos poderão esclarecer pontos fundamentais de um dos acontecimentos mais complexos da história do Brasil.

Ariane Norma de Menezes Sá é professora titular do departamento de História da UFPB e ex-coordenadora do Colégio de Pró-reitores de Graduação da Andifes (COGRAD).