O Censo da Educação Superior 2021 e os desafios para o Brasil do futuro – Por Ana Beatriz de Oliveira

Por Ana Beatriz de Oliveira

Em 2022 acompanhamos com atenção a realização, afinal, da III Conferência Mundial de Educação Superior, realizada no mês de maio em Barcelona, depois de múltiplas dificuldades em função da pandemia de COVID-19. No período que precedeu a conferência, acompanhamos e atuamos em movimentos importantes no âmbito da América Latina para que nossa participação fosse garantida e, sobretudo, para que houvesse espaço de defesa para a compreensão consolidada da Educação Superior como bem público e direito humano, que deve ser garantido pelo Estado. Vale lembrar que esse entendimento consta na declaração construída coletivamente na Conferência Nacional da Educação Superior na América Latina e Caribe (CRES) de 2008, realizada em Cartagena, Colômbia, tendo sido ratificada na CRES 2018, realizada em Córdoba, Argentina. Tal compreensão guarda relação direta com a história de colonização dos países latino-americanos, a fragilidade de suas democracias e a histórica desigualdade social, que não garante a todas as pessoas o acesso a políticas públicas que promovem desenvolvimento e mobilidade social. No bojo das discussões sempre estiveram presentes preocupações com a pertinência da educação – que deve estar comprometida com o contexto social regional; e com a garantia do financiamento público do Ensino Superior.

Nos últimos anos, porém, temos acompanhado um avanço importante de ideias e práticas que retrocedem a compreensão de Ensino Superior que se consolidou na América Latina e Caribe. Comumente temos tido a sensação de retorno aos anos 90, com projetos que visam mercantilizar a educação, sobretudo o Ensino Superior, delegando ao setor privado o papel de prover os serviços educativos. O cenário não é diferente no Brasil, sobretudo pelo abandono do projeto de expansão das Universidades e Institutos Federais. Apesar de não haver surpresa, os dados apresentados pelo INEP referentes ao Censo da Educação Superior 2021 nos mostra um cenário bastante preocupante e que demanda nossa atenção e atuação, sobretudo com o início de um novo governo que tem como pauta central o combate à desigualdade social e a educação como um de seus pilares.

Vamos aos dados. A rede privada de Ensino Superior no Brasil representa 87,8% das instituições de ensino (2.261 unidades) contra 12,2% das instituições públicas (313 unidades). Em 2021, 76,9% das matrículas no Ensino Superior ocorreram no setor privado. A relevância da rede privada no Brasil é conhecida e reconhecida, mas devemos considerar o cenário socioeconômico em que nos encontramos. A partir dessa reflexão, temos então que questionar quais pessoas têm acessado a educação no Brasil? Os dados da PNAD/IBGE nos mostram que o número médio de anos de estudo da população de 18 a 29 anos de idade em 2021 (Gráfico 1) se contrastam em função da renda (25% maior renda – 13,4 anos x 25% menor renda – 10,4 anos); da localidade (urbano – 11,8 anos x rural – 10,2 anos); da etnia (pessoas brancas – 12,3 anos x pessoas pretas/pardas – 11,2 anos); da região (sudeste – 12 anos x nordeste/norte – 11/11,2 anos); do gênero (mulheres – 11,9 anos x homens – 11,2 anos).

Os dados da PNAD/IBGE também apontam condição preocupante de frequência à escola e etapa de ensino (Gráfico 2). Em 2021, apenas 42,1% da população entre 18 a 24 anos havia concluído o Ensino Médio no Brasil; 19,7% frequentava a Educação Superior; 19% não frequentava e não concluiu o Ensino Médio; 11,2% frequentava o Ensino Médio; 4,3% não frequentava mas concluiu a graduação; e 1,9% ainda cursava o Ensino Fundamental.

O cenário atual nos mostra que ainda há uma distância importante a ser percorrida para o atingimento das metas 8 (*) e 12 (**) do Plano Nacional de Educação (PNE). Houve aumento constante na taxa bruta de escolarização no Ensino Superior, de acordo com a série histórica apresentada (2021-2021), com queda pontual em 2017, mas que não fora acompanhada pela taxa líquida. Estamos atualmente no mesmo patamar de 2017. Embora tenha havido aumento da oferta de Ensino Superior, esse aumento não acompanhou o crescimento populacional. A causa para esse cenário certamente contempla a falta de políticas públicas educacionais que vivenciamos nos últimos 6 anos. Vale também lembrar que o censo populacional não pode ser realizado no tempo adequado por falta de recursos destinados para tal. A despeito das dificuldades enfrentadas em função da pandemia de COVID-19, sabemos que a principal limitação esteve relacionada à falta de prioridade e não à falta de recursos. Devemos nos perguntar, sobretudo nesse momento, quanto custará ao país as âncoras fiscais que não contemplam o desenvolvimento, mas que são tão defendidas pelo mercado financeiro? Eu diria que algumas perdas são incomensuráveis – e afetarão também “o mercado”.

Estamos próximos de encerrar um ciclo de desmonte das políticas de expansão (e até mesmo de manutenção) da Educação Superior Pública e de investimento em Ciência, Tecnologia e Inovação. Lembremo-nos que estão nas Universidades Públicas a avassaladora maioria da produção científica do país (99%, de acordo com o relatório de 2018 da Clarivate Analytics para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES). Houve também, nos últimos 6 anos, absoluta falta de prioridade na destinação de recursos para as Universidades e Institutos Federais. O financiamento recebido pelas Universidades Federais é equivalente àquele dos anos 90. De acordo com levantamento realizado pela ANDIFES, o sistema das IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) recebeu recursos discricionários na ordem de 7,4 bilhões em 2014. Corrigido pelo IPCA (índice inflacionário previsto na Emenda Constitucional 95, que estabelece o teto de gastos), esse valor deveria chegar a 10,4 bilhões em 2021, mas sistema recebeu 4,5 bilhões para suprir as despesas de funcionamento. O orçamento das IFES em 2021 foi 50% inferior ao orçamento de 2015, mesmo com mesmo com o acréscimo de mais de 150 mil estudantes e seis novas universidades no sistema.

O cenário que combina restrição de acesso ao ensino aos jovens e asfixia do Ensino Superior Público implica diretamente na manutenção da desigualdade social. O Censo da Educação Superior também apresenta um dado importante: o mercado de trabalho brasileiro valoriza o trabalhador com ensino superior (Gráfico 8). No Brasil, trabalhadores com curso de graduação ganham 2,4 vezes mais que trabalhadores com ensino médio. Essa diferença passa para 4,5 vezes quando se considera o trabalhador com pós-graduação. Outras questões poderiam ser levantadas, por exemplo, como o Brasil lida com o Ensino Técnico, mas vou me ater à desigualdade social, que é abissal no país e tema atual do debate público. Não há como enfrentá-la sem fortalecer e ampliar o acesso à educação de qualidade, sobretudo ao Ensino Superior.

Nesse sentido, outro dado do Censo traz preocupação. A participação de jovens no ENEM cresceu exponencialmente entre 2004 e 2014 (passando de 1,036 para 5,974 milhões), com queda importante entre 2016 e 2021 – de 5,854 para 2,269 milhões (Gráfico 10). Votamos ao patamar de 2009, como resultado da falta de políticas públicas e do cenário socioeconômico. Sabemos quais jovens deixaram de participar no exame: aqueles marginalizados socioeconomicamente, que precisaram buscar o mercado de trabalho para colaborar na manutenção de suas famílias e que muito provavelmente não foram incentivados ou simplesmente desconhecem o sistema público de Ensino Superior. Vale ressaltar que ainda não temos clareza do efeito da pandemia de COVID-19 na conclusão do ensino médio e acesso ao ensino superior por jovens de grupos sub-representados na sociedade brasileira. O quadro, portanto, implica em estagnação da mobilidade social: sem motivação para ingresso e conclusão do Ensino Médio, sem acesso ao Ensino Superior, o destino desses jovens é a manutenção do seu status social – a partir do mercado informal e/ou da superexploração de sua mão de obra. Devemos, portanto, enquanto sociedade brasileira, valorizar as políticas de democratização de acesso ao Ensino Superior público – como a Lei nº 12.711/2012 (Lei de Cotas), que ainda se fazem necessárias; e buscar a recomposição orçamentária e consolidação de políticas que garantam a permanência desses estudantes na Universidade para conclusão de seus estudos (como o Plano Nacional de Assistência Estudantil). Indo além, é fundamental que essas políticas alcancem também a Pós-Graduação. Se por um lado avançamos na formação em nível de graduação de estudantes de grupos sub-representados, ainda não o fizemos em nível de pós-graduação. Perpetuamos, portanto, a sub-representação nas nossas Universidades, Institutos de Pesquisa e posições de destaque da sociedade.

Por fim, devemos também nos ater aos dados que demonstram o crescimento dos cursos superiores ofertados no formato a distância (EaD). Em 2021 as vagas em cursos EaD cresceram 23,8%, enquanto houve redução de 2,8% das vagas ofertadas para cursos presenciais. Dos 8,9 milhões de estudantes matriculados em 2021, 3,7 milhões (41,4%) eram em cursos EaD. Fica claro, portanto, que a Educação a Distância é o formato que prevalece na expansão do Ensino Superior no Brasil. É importante notar que o crescimento da oferta de cursos EaD é ainda maior entre as licenciaturas: 61% dos estudantes de licenciaturas cursam EaD, sendo que 77% dos ingressantes em licenciaturas em 2021 “escolheram” a EaD. Temos, portanto, um quadro posto para a formação de professores no Brasil e devemos refletir e discutir se é esse o caminho mais adequado para um país que ainda tem muito a avançar na educação, sobretudo no cenário pós-pandêmico. A sobreposição da EaD ao ensino presencial se dá particularmente na rede privada. Em 2019, o ingresso EaD nas privadas superior o ingresso presencial pela primeira vez na história – e vale notar que ainda não havíamos passado pela experiência da pandemia.

A EaD tem sido uma ferramenta potente para o Ensino Superior e não deve ser desconsiderada. No entanto, devemos refletir sobre sua adequação como modelo predominante, sobretudo para primeira graduação. Há dúvidas também sobre a capacidade de avaliação da qualidade dos cursos ofertados, tendo em vista o desmonte das políticas de avaliação no âmbito do MEC. Preocupa o fato de que a EaD também tem sido vista como ferramenta para aumentar o número de matrículas na rede pública e voltamos novamente à pergunta: quem terá acesso limitado ao ensino presencial? Estudantes com menor condição socioeconômica serão privados da formação plena que a convivência universitária oferece – a partir da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Há ainda o risco de segregação do acesso a diferentes áreas do conhecimento, sobretudo porque há limitação dos cursos ofertados na modalidade EaD – quem terá acesso às carreiras com formação técnica/tecnológica? Por fim, a pluralidade e diversidade na vivência em nossas Universidades é importante para todas as pessoas – precisamos garantir a representação da sociedade Brasileira também na Universidade Pública. Não há democracia sem direitos; não há direitos sem a busca pela redução da desigualdade; não há igualdade sem acesso à educação de qualidade POR TODAS AS PESSOAS.

O Brasil do Futuro precisa

  • Reconstruir todas as políticas públicas de educação e C&T;
  • Garantir o financiamento público da educação, da creche à pós-graduação;
  • Garantir a manutenção da Lei de Cotas e o adequado financiamento da permanência estudantil;
  • Expandir a política de cotas e permanência para a pós-graduação;
  • Garantir a avaliação adequada dos cursos de graduação e definir política adequada de expansão do Ensino Superior, com atenção especial à formação de professores.
  • As Universidades, sobretudo as públicas, devem agir no seu entorno, em parceria com municípios e governos estaduais construindo pontes para o acesso ao Ensino Superior seja uma realidade possível para todos os nossos jovens.

Ana Beatriz de Oliveira é reitora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

(*) Elevar a escolaridade média da população de 18 a 29 anos de modo a alcançar, no mínimo, 12 anos de estudo no último ano de vigência deste Plano, para as populações do campo da região de menor escolaridade no País e dos 25 mais pobres e igualar a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

(**) Elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50 e a taxa líquida para 33 da população de 18 a 24 anos, assegurando a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, 40 das novas matrículas, no segmento público.