UFPR desenvolve molécula-ímã para revelar a bioquímica por trás de doenças

Normalmente não pensamos que doenças têm base bioquímica, mas é exatamente o que acontece. A doença é geralmente um sinal de que as velocidades das reações biologicamente importantes foram alteradas, assim como as proporções de reagentes e produtos. Nossos corpos são como laboratórios complicados, com milhares de reações químicas acontecendo em sincronia. O controle dessas reações está sob o comando das enzimas — proteínas capazes de acelerar as transformações que ocorrem nas células. O bom funcionamento das enzimas, e das macromoléculas naturais de modo geral, é fundamental para a manutenção da nossa saúde.

Macromoléculas são, como o nome sugere, moléculas grandes formadas por milhares de átomos ligados uns aos outros. Nos organismos vivos elas são de diversos tipos. Por exemplo: as proteínas, como as enzimas e o colágeno; os ácidos nucleicos, entre os quais está o DNA; e os polissacarídeos, como o amido e a celulose. Cada tipo de molécula de interesse biológico tem as suas funções específicas, todas elas muito relevantes para a vida no planeta.

Essas macromoléculas, por serem grandes e variadas, têm estruturas complexas que precisam ser bem conhecidas para que se entenda como elas funcionam e, é claro, o porquê de elas deixarem de funcionar. De posse dessa informação, quando um organismo estiver doente, será possível identificar a origem do mau funcionamento e as ações necessárias para corrigi-lo. Afinal, não se pode compreender, e muito menos controlar, aquilo que não se conhece, não é mesmo? Ainda mais num ambiente tão rico, dinâmico e interrelacionado quanto um organismo vivo.

Aí se insere uma das possibilidades de emprego de magnetos moleculares — chamadas de moléculas-ímãs —, como os estudados por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Química da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Departamento de Química da Universidade de Florença (UniFI), na Itália.

Uma dessas moléculas foi descrita recentemente pelos pesquisadores na revista científica Chemical Science, publicada pela Sociedade Britânica de Química (RSC), e foi apelidada de Dy(pn)Cl.

Por se comportar como um ímã molecular, ou mais precisamente como uma candidata a etiqueta magnética molecular, ela poderá ajudar na determinação da estrutura de muitas outras moléculas. A novidade advém do fato do Dy(pn)Cl ter um elevado potencial como agente de deslocamento químico na Ressonância Magnética Nuclear (RMN).

A RMN de alta resolução permite identificar componentes químicos em nível molecular. O método usa um campo magnético forte para diferenciar as energias dos estados de spin (um movimento que pode ser comparado ao de rotação) dos núcleos dos átomos numa amostra em estudo. O monitoramento desses níveis de energia pode revelar o ambiente químico em torno de átomos individuais, permitindo que a estrutura de moléculas inteiras, incluindo macromoléculas biológicas, seja determinada.

É bom não confundir essas análises com os exames médicos por ressonância magnética de imagem. Nesses últimos, o mesmo princípio físico gera imagens detalhadas de partes do corpo, como cérebro, coração e músculos, ou de tumores — que permitem o diagnóstico de diversas doenças, como o câncer. Já a RMN de alta resolução, que tem espaço nos laboratórios de química desde a década de 1950, cria mapas e gráficos (espectros) de interações entre núcleos atômicos que podem ser prontamente decifrados por especialistas. Ou seja, a RMN tem sido uma ferramenta fundamental da pesquisa química desde muito antes da aplicação médica generalizada de imagens de ressonância magnética.

Uma das dificuldades da RMN em investigar macromoléculas — como as das enzimas ­— é o fato de os sinais produzidos pelos seus milhares de átomos se sobreporem, o que dificulta o entendimento dos gráficos produzidos pelos equipamentos. Isso acontece especialmente com os núcleos de hidrogênio, os quais são átomos chave porque estão entre os mais abundantes e mais estudados. Isso atrapalha a visualização de como eles estão conectados e quais os seus átomos vizinhos na estrutura da macromolécula.

A molécula-ímã, se for ligada à macromolécula como um marcador (“etiqueta magnética”), pode evitar essa sobreposição, por possuir uma magnetização própria que interage tanto com os núcleos dos átomos da macromolécula quanto com o campo magnético forte do equipamento. Dessa forma, os sinais de ressonância magnética da amostra serão mais bem separados nos gráficos, e a RMN produzirá espectros “mais limpos”, mais fáceis de interpretar, e, portanto, terá mais chances de sucesso nesse tipo de análise. É desvendando a estrutura de macromoléculas que a RMN pode auxiliar na detecção de alterações bioquímicas em organismos e, assim, identificar a presença de anomalias que indicam doenças.

Segundo a professora Jaísa Soares, que orientou a pesquisa de doutorado sobre a molécula-ímã Dy(pn)Cl no Laboratório de Química Bioinorgânica da UFPR, os resultados relevantes da pesquisa se devem tanto à geometria (formato) da molécula quanto ao uso de um elemento químico da família das terras raras, o disprósio, na sua composição. Esse metal, um dos chamados lantanídeos, tem entre suas propriedades a capacidade de formar compostos fortemente magnéticos. Uma curiosidade é o termo “terras raras”, que tem origem histórica — “terra” era uma denominação geológica genérica para alguns tipos de minérios (óxidos) no final do século XIX. Na verdade, os elementos da família não são realmente “raros” — o menos abundante deles tem ocorrência maior na crosta terrestre do que o ouro — mas, como ocorrem em misturas difíceis de separar, torna-se custoso obtê-los puros.

Tanto a presença de íons de disprósio quanto o formato da molécula-ímã têm importância para que ela apresente o desempenho excepcional descoberto pelos pesquisadores brasileiros e italianos. “Primeiro, trata-se de uma situação em que a geometria [o formato] da molécula é fundamental para maximizar a propriedade chamada de anisotropia magnética”, explica Soares. Essa propriedade é a que determina o efeito que a molécula-ímã tem sobre os hidrogênios da macromolécula que será analisada. “É a combinação dos dois, o ligante que determina o formato da molécula, e o íon central, com seus vários elétrons desemparelhados, que leva ao ótimo desempenho da molécula-ímã na Ressonância Magnética Nuclear”.
Molécula funciona como uma nanoetiqueta magnética

A molécula-ímã pode ser útil para resolver a sobreposição dos sinais de RMN porque ela funciona como uma etiqueta magnética que pode ser “colada” (ligada quimicamente) na macromolécula para sondar regiões estruturais específicas. O magnetismo da etiqueta atua de forma previsível, deslocando os sinais de ressonância dos átomos alvo e separando-os uns dos outros. Com isso, os espectros de ressonância magnética nuclear se tornam menos “borrados” e, portanto, mais fáceis de interpretar.

“A RMN é uma ferramenta poderosa para a elucidação da estrutura e da dinâmica das moléculas biológicas quando os estudos são realizados em solução. Por dinâmica, queremos nos referir à forma como ocorrem as interações da biomolécula com outras moléculas. Para entender isso, é importante lembrar que, nas células e nos tecidos vivos, as moléculas estão dissolvidas ou suspensas em água. Assim, é importante que o marcador magnético (a molécula-ímã) seja solúvel e, mais do que isso, seja estável em solução.”

A pesquisadora Francielli Sousa Santana, que investigou no doutorado as propriedades magnéticas dos compostos de lantanídeos como o Dy(pn)Cl, conta como o disprósio foi selecionado entre diversos elementos da família. “Entre todos os íons da série dos lantanídeos, ele é um dos que possuem o maior valor do momento magnético total, fator importantíssimo para o desempenho magnético da molécula”, lembra.

Em seguida, foi necessário pesquisar um formato de molécula que pudesse maximizar esse potencial. Em colaboração com o Laboratório de Magnetismo Molecular da Universidade de Florença, liderado pela professora Roberta Sessoli, Santana partiu de um composto orgânico estudado pela primeira vez em 1992 pelo grupo de pesquisa liderado por Ademir Neves na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) — o H2bbpen3 — e testou diversos compostos derivados desse pré-ligante em reações com o disprósio até produzir uma molécula-ímã com geometria e propriedades magnéticas diferenciadas, o Dy(pn)Cl.

“A descoberta de que as propriedades magnéticas se mantêm inalteradas quando os cristais da nossa molécula são dissolvidos em solvente orgânico foi extraordinária, pois isso permite os estudos de RMN em solução”. Ou seja, abre a possibilidade de interações bastante promissoras com biomoléculas.

O desenvolvimento da molécula-ímã Dy(pn)Cl foi possível por meio de uma cooperação internacional intensa, que há pelo menos dez anos tem espaço nos laboratórios de pesquisa envolvidos. Três dos colaboradores estrangeiros são os professores Mauro Perfetti e Enrico Ravera e Matteo Briganti, todos da UniFI, que, junto com Sessoli, também assim o artigo publicado na Chemical Science. Briganti fez pós-doutorado por dois anos no Laboratório de Química Bioinorgânica da UFPR, entre 2019 e 2021, com bolsa do Programa de Internacionalização (PrInt) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Num panorama mais amplo, também participam da colaboração as Universidades Federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e Tecnológica do Paraná (UTFPR) e a Universidade de Aveiro (Portugal), nos estudos das propriedades magnéticas e fotofísicas (fotoluminescência) das moléculas contendo lantanídeos.

Texto originalmente publicado por UFPR