A universidade federal brasileira, a pandemia da Covid-19 e além – Por Antônio Cláudio da Nóbrega

Vivemos um momento único dos últimos 100 anos da nossa história com a pandemia da Covid-19 associada ao novo coronavirus (SARS-CoV2). Nesse contexto, todas as quase setenta universidades federais brasileiras das cinco regiões do país realizam programas e projetos de toda natureza, desde pesquisa básica em todas as áreas e investigações nas ciências humanas e sociais, passando pelo desenvolvimento tecnológico inovador e produção de insumos, até ações extensionistas de atenção à saúde, solidariedade e responsabilidade social. Até aí, nenhuma surpresa, pois essa é a rotina da universidade federal brasileira. Mas a semelhança com os idos tempos de 2019 não vão além disso. A começar com o foco. A enorme maioria dessas ações trata do novo coronavirus e suas consequências na saúde, comportamentais, institucionais, econômicas e socias. Por força de necessidade e não por escolha própria, docentes e servidores técnicos e administrativos foram recomendados a trabalhar remotamente, em casa, de quarentena. Uma nova rotina tem sido construída com dificuldades, mas dedicados a superá-las, intensos nas mensagens de celular e email, aprendendo a organizar e participar de reuniões, videoconferências e lives, todas por meio dos seus próprios telefones e micro computadores. Não pararam. Continuam trabalhando de forma diferente, muitos com limitado ou custoso acesso à internet. Ansiosos sim, mas atentos à realidade e se reinventando.

Assim como ocorre em todas as universidades de mais de 130 países, as atividades regulares presencias foram suspensas no Brasil. Medida absolutamente necessária para o bem da comunidade universitária e da sociedade em geral. Sobre isso, um mega desafio! Como dar conta de apoiar o bem-estar mental dos alunos em isolamento? Como participar da garantia das mínimas condições de subsistência de centenas de milhares de estudantes, considerando que 70,2% deles vivem na faixa de renda mensal familiar per capita de até um e meio salário mínimo, segundo a Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) Graduandos(as) das IFES publicada em 2018 pela Associação dos Reitores das Universidade Federais (ANDIFES)? E ainda, como manter a identidade institucional dessas pessoas e promover seu desenvolvimento em meio à pandemia seja agora ou em um novo cenário, “talvez” com menos presença física na instituição? Experiências com atividades remotas, via internet, têm sido realizadas com maior ou menor intensidade, algo que parece irreversível à luz das transformações que ocorreram ao longo dos anos na sociedade em geral, bem evidentes nas comunicações cotidianas, transações bancárias pessoais e corporativas, compras de todo tipo e ações judiciais. Por outro lado, como garantir inclusão social e qualidade, valores inalienáveis da universidade pública? Somada à falta de construção conceitual sólida das instituições no tema, ausência de formação pedagógica específica do corpo docente e dificuldade de articulação de saberes e interação humana e social, o baixo acesso à conectividade limita muito o alcance das atividades produzindo exclusão digital, ao considerarmos os dados da pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nas escolas brasileiras publicada no ano passado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (TIC Educação). Segundo esse levantamento, quase um terço dos estudantes de escolas localizadas em áreas urbanas não possuíam nenhum tipo de computador no domicílio (tablet, computador portátil ou de mesa). Entre os alunos usuários de internet, 18% deles acessaram a rede exclusivamente pelo telefone celular, com suas grandes limitações como interface, custo, velocidade e estabilidade. Consideremos ainda as precárias e tumultuadas condições do ambiente doméstico de muitos estudantes.

Se o ambiente de incerteza de todo tipo já é enorme agora, o que dizer do futuro próximo? E mais ainda do futuro ainda distante? Não há como saber, bem ao estilo “Como será o amanhã? Responda quem puder!”. Só é possível especular, projetar e construir alternativas mentais para que não fiquemos simplesmente aguardando cair uma solução do éter. Calma! Não é hora de voltarmos presencialmente ainda. Não mesmo. É o que apontam a ciência e as experiências internacionais. Por outro lado, as universidades federais têm um papel central, a qualquer tempo, na observação e análise da realidade, na projeção de cenários e na proposição de políticas públicas. Esse papel se intensifica no contexto da pandemia. Portanto, a força da rede de universidades federais tem grande potencial, e até mesmo a missão, para colaborar na previsão dos possíveis cenários e na definição das condições e características da retomada das atividades presenciais nas centenas de campi espalhados por todo o país. Nesse contexto, a ANDIFES está construindo um grupo de cooperação ampla e intensa entre as universidades federais articulando seus estudos já em andamento e a construção de outras estratégias na direção desse objetivo.
Questões centrais envolvem, em primeiro lugar, considerar as condições de proteção a saúde preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de controle da contaminação populacional do vírus, proteção dos vulneráveis e garantia de margem de segurança do sistema de saúde. Além disso, é indispensável considerar os aspectos regionais como o perfil epidemiológico e o grau de interação com a autoridade sanitária local. As decisões das universidades federais deverão ainda estar necessariamente articuladas com os potencias impactos das milhares de pessoas circulando nos seus campi, muitas vindos de outros municípios. Essas análises deverão produzir projeções e estimativas das necessidades de ajustes ou até mesmo transformações mais ou menos profundas da estrutura e funcionamento dos seus cursos, programas, projetos e fluxos de pessoas e processos.

Mas não basta pensarmos e planejarmos como seremos as universidades federais. Somos parte da sociedade. Então, como seremos, os humanos, as sociedades e a humanidade? Dentre os muitos e muitos textos que tenho lido sobre o que acontece no mundo de hoje e do desconhecido amanhã, destaco o do Donald Berwich do Institute for Healthcare Improvement de Boston, EUA, publicado no Journal of the American Medical Association no dia 4 de maio deste ano e o do Adam Tooze na seção “Politics Book” do “The Guardian”, publicado no último dia 7. O primeiro intitulado “New Normal” (ou “Novo Normal”) trata da atenção à saúde e o segundo de economia política, mas ambos passam pelos valores que poderão embasar a nova sociedade. Ou deveriam… Do artigo de Berwich destaco a maior “velocidade do aprendizado”, a necessidade de nos “prepararmos para ameaças” e, principalmente, combate a “iniquidade”.

Se algo ficou evidente, ou fica mais evidente a cada dia, é que desigualdade mata. Não é mais possível fingir que não vemos que as condições sociais e econômicas são determinantes de sobrevivências ou morte. Como escreve Berwich: “Em Chicago, 30% da população é afro-americana, mas eles representam 68% das mortes da COVID-19. Em Wisconsin, os afro-americanos são responsáveis por 6% da população, mas 50% das mortes.” As estatísticas ainda em compilação no Brasil com um perfil epidemiológico em transformação também já apontam nessa direção.” E Berwich continua: “Quem estuda o conjunto das vastas desigualdades, no mundo inteiro ou nos EUA, poderia prever essas mortes desproporcionais com certeza absoluta muito antes de ocorrerem. A maior consequência a ser considerada no novo normal para o futuro dos EUA e da saúde global é a seguinte: os líderes e o público agora finalmente se comprometem com uma rede de segurança social e econômica sólida, generosa e durável? Isso faria mais pela saúde e bem-estar humano do que poderia qualquer vacina ou droga milagrosa”. Na mesma linha, Adam Tooze escreve ao considerar que após ser desenvolvida uma vacina segura e eficaz: “O custo de vacinar o mundo inteiro é estimado em cerca de US $ 20 bilhões. Isso equivale a aproximadamente duas horas do PIB global, uma pequena fração dos trilhões que a crise está custando. O fato desse vírus ter se tornado uma crise global não é explicável em termos de interesses opostos em massa. É antes de tudo um fracasso de governo.” Portanto, além de especular, projetar e planejar quando e como voltaremos às atividades presenciais nas universidades federais e propor cenários de retorno à circulação de pessoas na sociedade, essa crise é uma oportunidade de um mundo melhor. Mas isso não é certo. Como resume Berwich: “O destino não criará o novo normal. Escolhas, sim.” Façamos nossas escolhas!

Antonio Claudio Nóbrega é reitor da Universidade Federal Fluminense (UFF)

 

Fonte: O Globo