Pandemia: o voo necessário das universidades federais e da Andifes

Por Gustavo Balduino – Secretário-Executivo da Andifes

Esse texto tem um recorte no tempo, espaço e tema e, dessa forma, reconhecida redução da complexidade político-social do período abordado. O foco no enfrentamento da pandemia tem a pretensão de assinalar a importância política e institucional da Andifes para as universidades federais, portanto, para o País, nessa quadra importante da história recente.

A expressão “aprender a voar em pleno voo” é tradicionalmente utilizada para situações em que não há conhecimento prévio sobre um determinado procedimento, e as ações e decisões devem ser executadas na primeira vez em que se realiza este processo. Essa expressão exemplifica perfeitamente o que se passou quando o planeta se deparou, em meados de 2019, com o início do que veio a ser a pandemia de Covid-19, única e sem referências anteriores nesta geração.

Ainda que a doença tenha se espalhado pelo mundo em etapas, sua duração, sequelas e potencial disruptivo, até hoje não foram dimensionados. No Brasil, o estado de emergência sanitária foi decretado em 4 de fevereiro de 2020 e o primeiro caso foi confirmado no dia 26 do mesmo mês. Em 11 de março, a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia.

Semelhantemente a outras metáforas que vêm sendo usadas para descrever o cenário e emoções que se abateram sobre os brasileiros e, em especial, sobre a educação no Brasil, a partir dos desafios e necessárias decisões com a inesperada pandemia, também lanço mão da ilustração de um voo de avião para consolidar minha perspectiva sobre o período.

O ineditismo, a falta de base científica consolidada, o alcance e o rápido espraiamento do vírus fizeram com que, não só o Brasil, mas todo o planeta tivesse que aprender a voar em pleno voo. Os aviões, aliás, estavam intrinsecamente conectados à história do vírus, sendo seu principal meio difusor entre continentes e fazendo com que, em poucos dias, praticamente todo o globo registrasse casos. A analogia com a aviação é oportuna e bastante elucidativa para destacarmos como o Brasil, as universidades e, principalmente, a Andifes se comportaram ao longo destes últimos anos frente a este longo “voo da Covid-19”.

Um voo tem pelo menos três etapas bem distintas. A decolagem, voo de cruzeiro e o pouso. O padrão de segurança pressupõe aeronave em perfeito funcionamento, plano de voo, controle do espaço aéreo, o comportamento adequado de passageiros e tripulantes habilitados.

A decolagem

A chegada repentina de uma pandemia e a alta velocidade de transmissão do vírus fizeram com que fossem necessárias medidas urgentes e atípicas: uma decolagem rápida, sem plano de voo, com embarque acelerado, avião lotado, deixando passageiros para trás e sem destino certo. Desde antes da decolagem, ao se olhar para o céu, observavam-se nuvens escuras, com a coloração do fascismo, que ainda hoje não se dissiparam.

Trazendo a analogia para o contexto das universidades, enquanto se reagia às fake news que atacavam as instituições, foi necessário interromper as aulas e outras atividades presenciais, sem saber qual a duração desse período, sem um plano de passagem para a nova realidade, sem plataformas e equipamentos definidos para a substituição das aulas presenciais, sem vacina ou remédios conhecidos.

Logo após suspender as atividades presenciais como resposta imediata à emergência do alastramento da doença, era necessário descobrir de qual maneira retomar as atribuições e compromissos das instituições e das pessoas. Funcionar.

Neste contexto, a Andifes, então sob a presidência de João Carlos Salles, rapidamente muda a rotina e inicia os debates para qualificar e dimensionar os novos problemas e possíveis respostas. A partir desse espaço, a geração de gestores daqueles dias construiu as condições para essa decolagem, cheia de imprevistos, como a falta de internet ou conexão para parte dos alunos, ausência de normas adequadas, culturas e calendários diferentes em cada instituição, impactos da pandemia em intensidades distintas nos estados e municípios.

Assim, as universidades federais, em um primeiro momento, em interlocução com as autoridades sanitárias, que também estavam aprendendo a voar, centraram suas energias para a ajuda às demandas da população, por meio do atendimento nos hospitais universitários, produção de álcool gel, máscaras e equipamentos, ou cedendo seus laboratórios para reforçar a testagem de casos suspeitos. Em paralelo, centenas de seus pesquisadores começam a estudar a doença.

Mas não só o avião das universidades foi obrigado a decolar sem plano de voo. O avião da educação básica enfrentou ainda mais dificuldades para decolar, confrontou com maiores adversidades, deixou mais gente para trás. Eram mais passageiros para levar, com limitações nas possibilidades de ensino remoto, que funciona com mais dificuldade para o ensino de crianças e adolescentes, somadas a uma menor conectividade nas cidades do interior do país, especialmente para a parcela mais pobre dos estudantes, que contava com menos dispositivos para acompanhar as aulas, com professores dedicados, mas sem preparo técnico, apoio e estrutura para manterem suas atividades na nova realidade.

O sentimento de todos era de uma decolagem “olhando para trás”. Voar e voltar ao mesmo lugar, imaginando ser questão de poucos meses até a retomada das atividades nos moldes pré-pandemia. Subestimar a duração da pandemia foi um engano comum.

Mas, considerando todo o contexto adverso, atravessando e superando ventos contrários, a decolagem ocorreu da melhor maneira possível, e o voo foi iniciado buscando ganhar altitude e uma estabilização mínima. As universidades logo retomaram as atividades administrativas e, após poucas semanas, as atividades de ensino por meio remoto.

O voo de cruzeiro

Concluída a decolagem, o objetivo era um voo tranquilo. Logo se identifica o paradoxo de se buscar um voo de cruzeiro, mas que vai rumo ao desconhecido. As turbulências eram constantes.

A demora para a chegada da vacina e as discussões sobre sua eficácia eram fortes ventos contrários afetando as condições de voo. Piorando o cenário já complexo, a torre de controle estava completamente confusa e sem capacidade de orientação do “espaço aéreo”, ou seja, não havia política clara de enfrentamento da pandemia. Além de não coordenar, a torre de controle, por vezes, provocava insegurança, adicionando ao vírus biológico o vírus ideológico ao questionar a eficácia da vacina e retardar sua aquisição e distribuição, estimulando abertamente sua rejeição e negando informações científicas, apostando em uma contabilidade macabra sob uma falsa dicotomia de “mortes necessárias” para que a economia pudesse funcionar.

Na Andifes, assume o comando da aeronave o reitor Edward Madureira Brasil, cujo mandato se dá inteiramente em período de pandemia. As reuniões da Diretoria passaram a ser diárias. Assim como nas universidades e demais organizações, quase todas as atividades e interações humanas e institucionais eram virtuais. A orientação foi acentuar as trocas de experiências no Conselho Pleno, fóruns e colégios de pró-reitores assessores da Andifes e a interlocução com a torre de controle.

A partir da vacina, que começou no Brasil em 17 de janeiro de 2021, de um melhor conhecimento sobre o vírus e de uma maior conscientização das autoridades, começa-se a estabilizar o voo. Apesar das intempéries e eventuais turbulências, de um lado, a falta de campanhas públicas de vacinação, redução de orçamento das instituições, maior demanda por assistência estudantil, novos ciclos agudos da pandemia, de outro, uma compreensão da doença, os efeitos das medidas sanitárias e de isolamento social, e uma maior familiaridade com o ensino remoto, seus potenciais e suas limitações, permitiram que o avião das universidades federais entrasse em voo de cruzeiro. Aulas remotas com regularidade e qualidade, formaturas realizadas, pesquisas em andamento.

O Pouso

Graças ao trabalho feito pela ciência, ao avanço da vacinação e dos próprios ciclos da doença, em um ambiente epidemiológico menos hostil, mas ainda incerto, quase três anos depois uma nova transição, o avião inicia o pouso. Em momento oportuno, pois os sinais de exaustão eram evidentes: chegava-se ao limite da capacidade de isolamento e de se manter a economia em modo pandemia. Boa parcela da sociedade já retomava às atividades.

Qual não foi a surpresa, quando a aterrissagem se deu em um aeroporto diferente daquele que decolamos, em uma nova realidade. Nas universidades, o retorno às aulas se dá de maneira e com calendários diferentes: falta de legislação adequada para a nova transição, novas exigências sanitárias. Mudaram também muitos passageiros, alunos que nunca entraram nas salas de aula físicas das universidades. Alunos que não voltaram. Reitores empossados que até aquele momento desconheciam a normalidade na função. O uso de tecnologia ganhou escala. O ensino e o trabalho remotos se tornaram hábitos, comodidades, e agora têm sua eficácia questionada. O financiamento das pesquisas, do custeio e da assistência estudantil sofre bloqueios.

A desejada volta ao presencial parecia mais simples. Porém, se confirma o alerta dos especialistas de que o pouso é uma das etapas mais críticas do voo. Chegamos ao solo com inflação, recessão, guerra na Europa. No Brasil, como que ignorando a pandemia, nunca se viu uma sociedade tão polarizada, quando o momento recomendaria comunhão de esforços. Os poderes da união se digladiando. Descobre-se que boa parte do orçamento público se tornou secreta; o processo eleitoral colocado sob suspeita por quem se elegeu por meio dele. Nuvens com a coloração mais intensa.

Nesse novo ambiente, o presidente da Andifes já era o reitor Marcus Vinicius David. Com ele, nossos aviões tocaram o solo com segurança. As atividades de ensino, pesquisa e extensão, bem como as administrativas, estão assumindo uma nova normalidade. Nas universidades e na Andifes, as interações interpessoais e institucionais recuperam o espaço físico e, assim, as identidades.

O desembarque

Aeronaves no solo. Estamos taxiando, mas a contabilidade da pandemia precisa ser iniciada. No pós-pandemia, valores, expectativas, hábitos de trabalho, paradigmas, enfim, a sociedade e as universidades são outras? De início, já é possível contabilizar: a importância do Sistema Único de Saúde no Brasil nunca foi tão evidente; o maior reconhecimento da ciência e do papel das universidades federais; a saúde coletiva, física e mental requerem atenção; o uso de tecnologias, antes incipientes, tornou-se cotidiano. Os professores, alunos e técnicos aprenderam a lidar com as atividades remotas. Surgiram inúmeras experiências metodológicas inovadoras, como o programa de mobilidade virtual “Promover Andifes”. E o principal legado: a vacina!

Durante esse voo, as desigualdades foram acentuadas, muitas vidas perdidas, famílias profundamente afetadas. A adaptação, após pisar em solo firme, é feita em etapas, muitas em construção. Após o pouso, dúvidas: será que a pandemia está acabando? Haverá uma nova variante do vírus? Teremos que decolar novamente? Quantos passageiros embarcaram na origem? Quantos ficaram pelo caminho? Como resgatá-los? Como nos apropriarmos das experiências? Principalmente, quais são as perguntas certas?

Respeitando o luto pelos milhões de vidas perdidas e indignação com a desigualdade, acentuada pela pandemia, e, sem desconsiderar o bom trabalho que várias outras instituições e segmentos sociais que também se viram diante da necessidade de decolar apressadamente seus aviões – e outras que não tiveram essa escolha, mas que, com coragem e dedicação, enfrentaram em terra a pandemia, é preciso dar relevo ao êxito desse voo da Andifes, possível apenas pela rápida compreensão da gravidade da situação e da dedicação em buscar soluções por parte das comunidades, dos reitores e suas equipes gestoras e das direções da Andifes.

Desde o primeiro instante, foi justamente na Andifes que, cumprindo o seu papel político e institucional, essa compreensão da gravidade e dedicação em buscar soluções encontraram abrigo e orientação. Reunir e coordenar esse coletivo de reitores – sujeitos diversos, detentores das responsabilidades de gerir os meios e de decidir a oportunidade, os passageiros, a rota, o destino, e de assegurar as melhores condições de voo e pouso de cada universidade – acolhendo e respeitando as diferentes realidades e cada autonomia, foi fundamental para o sucesso dessa inusitada viagem que o destino nos impôs.

Foi na Andifes, na sequência das presidências de João Salles, Edward Brasil e Marcus David, de modo coletivo e com imprescindível amparo nos fóruns e colégios de pró-reitores e assessores debateram e compartilharam as condições para viabilizar a segurança desses voos. Também será no espaço da Andifes o ambiente catalisador para responder tanto os desafios surgidos na pandemia, quanto aqueles que o passado guardou ou o futuro ainda vier a nos apresentar.

Cada universidade fez o seu próprio voo. Mas, independentemente do tamanho, tempo de existência ou localização, foi indispensável a troca de experiências, a força política que o sistema representa, a unidade de interlocução com os diversos operadores da torre de controle, o diálogo permanente com a sociedade por meio da mídia, transparência e informações verdadeiras, sobretudo, voz no cenário nacional. Enfim, condições imensuráveis, porém absolutamente necessárias para cada uma completar a sua viagem em segurança. Uma rota traçada na Andifes, onde, em momento algum, o voo foi por instrumentos.

Gustavo Balduino – Secretário-Executivo da Andifes

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